“Brota uma intérprete ampla, espaçosa ponte ente as chamadas raízes e os frutos recém-amadurecidos. Enfim, mais que o santificado monumento, estamos diante da própria árvore genealógica do samba. Viva e cantando”. O comentário do crítico Tárik de Souza, publicado em abril de 1976, na revista Veja, é o que, entre tantos e tantos outros, define com precisão Clementina de Jesus da Silva (1901/1987), cantora que encantou e surpreendeu o país durante uma relativamente curta carreira, que durou pouco mais de duas décadas.
Os trinta anos de morte da cantora são lembrados na biografia Quelé, A Voz da Cor – Biografia de Clementina de Jesus, de Felipe Castro, Janaina Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz (Civilização Brasileira, 364 páginas, R$ 49,90). Produzido originalmente para conclusão do curso de jornalismo, extrapolou os meios acadêmicos para se tornar a mais completa biografia da espantosa árvore genealógica, descoberta pelo jornalista, compositor, produtor Hermínio Bello de Carvalho, quando Clementina estava com 63 anos, e parecia fadada a viver o resto dos seus dias como empregada doméstica e quituteira.
Ele a viu e ouviu pela primeira vez na Taberna da Glória, no mês de agosto, na festa da padroeira do bairro da Glória, no Rio. Passaria quase dois para reencontra-la. Depois disto o samba nunca mais seria o mesmo. Clementina de Jesus era neta de escravos. A mãe escapou do jugo, por causa da Lei do Ventre do Livre, era descendente de bantos, etnia a qual pertencia os africanos chamados angolas, congos, cabindas e benguelas. Em sua memória estavam conservados cantos ancestrais dos africanos, que ela levaria ao palco e aos discos que gravaria com o produtor carioca.
SAMBA
Os autores contam a trajetória de Clementina de Jesus, com uma narrativa paralela das transformações da então capital do país, a partir da primeira década do século 20 (a família dela se mudou para o Rio em 1908),e a própria formação e revalorização do samba, nos anos 60, em grande parte graças ao show Rosa de Ouro, com Clementina, Aracy Côrtes (que teve seu auge nos anos 30 e 40), e o Conjunto Rosa de Ouro (Anescar do Salgueiro, Élton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Nelson Sargento, Paulinho da Viola), dirigidas por Hermínio Bello de Carvalho, apresentaram um dos musicais históricos da MPB, que firmaria o nome não apenas de Clementina de Jesus, mas também do iniciante Paulinho da Viola.
NANÁ
Quelé, como ela também era carinhosamente chamada, era a inclassificável, escreveu Roberto Moura, crítico da Tribuna da Imprensa: “Não é da velha guarda, não das novas guardas, não é bossa nova, nem tropicalista. Clementina existe como artista, mas fora de catálogos predeterminados (e nem adianta tentar inclu-la na lista dos primitivos, ou dos primitivistas, porque também nem só isso se contém nela). O percussionista Naná Vasconcelos conheceu Clementina em 1973. Já morava na Europa, e veio ao Brasil para uma curta temporada.
A ligação que procurava entre o Brasil e o continente africano encontrou em Quelé. Os autores chegaram a entrevista-lo para o livro, e ele detalha sua participação no álbum Marinheiro Só, já o oitavo da cantora. Uma das faixas, Taratá, tem apenas os dois, Ela canta e Naná a acompanha com uma tabla, possivelmente a primeira vez que o instrumento indiano foi usado na música brasileira. Nos anos 90, Naná foi à ilha de Goreé, na costa do Senegal, um dos últimos pontos de saída de escravos para as Américas no século XIX, para participar de um documentário, e compôs lá a canção Clementina no Terreiro.
Com Naná começa a segunda fase de Clementina de Jesus. Ela passou a ser cultuada entre os astros da MPB, Milton Nascimento, Caetano Veloso (que dedica o Araçá Azul a ela), João Bosco. Foi até alvo da censura, a gravação que fez com Milton Nascimento, Os Escravos de Jó, do disco Milagres dos Peixe (a música foi liberada, com a letra mutilada). Incluida na caravana do Projeto Pixinguinha a levou a diversas capitais do país. Ela se não chegou a ser um sucesso popular, recebeu o reconhecimento em vida, embora tardio. O que aliás não aconteceria apenas a ela. Cartola e Nelson Cavaquinho chegariam ao disco anos depois de Clementina de Jesus.
A idade foi pesando (a memória começou a falhar). Em 1977, Albino Pé Grande faleceu, o que a deixou bastante abalada. Ainda por cima, a fama não era proporcional ao que recebia. Aos 78 anos, gravaria o décimo disco, não mais com Hermínio Bello de Carvalho. O produtor foi Fernando Faro. Um disco difícil. Não era fácil gravar Clementina. Sua voz obedecia mais ao ritmo do que a harmonia. Quando gravou com Faro perdera muito do vigor vocal. Um disco que gravava em quatro dias, levou vinte. Mas mesmo debilitada por um AVC, ela viveria até os 87 anos.
A neta de escravos, que fez a primeira viagem de avião para a África, para participar de um festival de arte negra em Dacar, no Senegal. fez sua derradeira gravação para o álbum O Canto dos Escravos, da gravadora Marcus Pereira