Vestidas de branco e entoando cânticos, "baianas do abarajé" aspergiram e benzeram na terça-feira (21) - Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial - um cadeado da época colonial, primeiro objeto doado para o Museu da Escravidão e da Liberdade (MEL). A peça histórica foi entregue à Secretaria Municipal de Cultura do Rio pelo restaurador Marconi Andrade, integrante do Conselho Municipal de Cultura.
A doação do cadeado de ferro, utilizado por escravos na senzala de uma fazenda de café no município de Vassouras (RJ), marcou o início do trabalho para instituir o museu, que tem prazo de 40 meses para ser implantado.
Um grupo de trabalho formado por órgãos da prefeitura foi instituído para levantar o que já existe em cada pasta municipal e que possa ser incorporado ao museu, segundo a coordenadora do futuro MEL, Cristina Lodi.
Nos próximos dois meses, esse grupo deve definir o local em que o museu será instalado. Espaços na zona portuária do Rio estão em análise, para que a unidade integre o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, que tem como um dos principais pontos o histórico Cais do Valongo.
Redescoberto nas obras de revitalização da zona portuária e candidato a se tornar patrimônio da humanidade, o cais recebeu cerca de 500 mil dos 2 milhões de africanos trazidos à força para o Rio de Janeiro.
Dentro de três meses, o grupo planeja realizar uma oficina de três dias com representantes do movimento negro, para ouvir ideias de como devem ser o acervo e a proposta do museu. A partir dessa oficina, será constituído um conselho consultivo que vai participar da construção do fio condutor do projeto.
"A gente está em um processo de escuta contínua, A gente não bate o pé em nenhuma questão. [Ouvimos] sugestões e nomes provisórios, para partir de algum lugar, debater e tentar um consenso. Se ele existir, maravilhoso", disse Cristina Lodi.
A proposta de criar o Museu da Escravidão foi alvo de críticas ao ser divulgada no início do ano. Uma das que ganharam mais eco foi a do compositor e pesquisador negro Nei Lopes, que afirmou que o resgate da escravidão é lesivo à autoestima da população negra.
A escravidão no país, argumentou o compositor nas redes sociais, deveria ser lembrada apenas "por ter legado ao Brasil e ao mundo um inestimável patrimônio cultural, expresso em novas e instigantes formas de pensar, agir, trabalhar, criar, produzir, viver enfim. Em vez de um museu da escravidão, muito melhor seria projetar um museu da herança africana", disse Lopes, que afirmou ter se manifestado para chamar a atenção para a "impropriedade da iniciativa".
A secretária municipal de Cultura, Nilcemar Nogueira, disse que um grupo constituído na oficina a ser realizada para ouvir ideias de como deve ser o museu vai participar da decisão do peso que terão a memória da escravidão e a herança cultural africana. "Tais anseios serão respondidos pouco a pouco nessas etapas. Na primeira etapa [da oficina], minha escuta é do povo negro. Sem desprezar nenhuma das pesquisas existentes. A instalação de um conselho será em um segundo momento. As diretrizes serão dadas pela sociedade."
Neta de Cartola e dona Zica, baluartes da Escola de Samba Mangueira, Nilcemar disse que o museu fará "emergir memórias subterrâneas", que ajudarão a explicar a desigualdade racial no Brasil. "É inegável que muitos grilhões permanecem em nosso inconsciente coletivo."
Segundo Nilcemar, a criação do MEL é uma oportunidade de "celebrar um Brasil culturalmente rico, valorizando as conquistas do povo negro e as contribuições da cultura de matriz africana. [Servirá ainda para] refletir sobre as influências de nosso passado escravocrata na situação de exclusão social na qual ainda vive uma parte dos afrobrasileiros".