A vanguarda negra do Brasil contemporâneo

Artistas negros propõem novas sensibilidades e formas de encarar a arte e seus limites, desafiando história racista
GG ALBUQUERQUE
Publicado em 29/10/2017 às 9:00
Foto: Foto: Filipe Berndt/Divulgação


No início dos anos 1930, diante do crescimento das escolas de samba, os sambistas do Rio de Janeiro sentiam a necessidade de criar um batida mais acelerada para dar conta dos desfiles de rua. Valendo-se de suas habilidades técnicas de sapateiro, Alcebíades Barcelos, o Bide, resolveu “encourar” uma lata de manteiga de 20 quilos com papel de saco de cimento umedecido, criando assim o tambor de som grave conhecido como surdo. O resultado foi um verdadeiro lance de mestre: a partir da intuição e de uma percepção corporal, Bide transformou o samba e, com outros músicos do bairro do Estácio de Sá, desenvolveu uma linguagem nova e singular, distante do toque amaxixado de Donga.

Entretanto, categorias como “vanguarda cultural”, “música de invenção” e “inovação estética” não são atribuídas ao samba, mas sim – ou somente – ao Modernismo e à Semana de 22. Ao samba, gênero forjado na mão de negros descendentes de escravos, é destinado uma espécie de morte térmica: o paternalismo de uma “tradição”, tutela estratificante que enclausura todas as invenções do contemporâneo e engessa o agora sob a égide da museificação.

O caso do samba ilustra um dentre inúmeros apagamentos históricos das culturas afro-diaspóricas em um País que, historicamente, tentou varrer seu passado escravista para baixo do tapete – o Hino da Proclamação da República, em 1890, afirmava: “Nós nem cremos que escravos outrora/ Tenha havido em tão nobre País”. É um dos sintomas da escravidão e racismo que ainda reinam e, como o sociólogo Jessé de Souza argumenta em seu novo livro A Elite do Atraso, definem a sociedade brasileira – as nossas relações sociais, subjetividades, construções de valores etc. Em resposta a esse quadro, uma série de obras contemporâneas, do cinema à música, além de uma denúncia desta realidade, propõem um panorama de transe, delírio e sonho afrofuturista e pós-colonial – uma vanguarda negra contemporânea.

Misturando documentário e ficção científica lo-fi, o cineasta Adirley Queirós, da Ceilândia, Distrito Federal, traz uma história de negros vítimas de violência policial em busca de vigança contra o Estado brasileiro em Branco Sai, Preto Fica (2015). Um filme ruidoso, sujo e de corpos amputados – uma metáfora da própria cidade, da memória e da condição do negro.

Buscando a radicalidade, Adirley critica o modo fetichizado como a periferia costuma ser retratada. “Uma das primeiras questões era como a gente lidaria com esse corpo periférico. Interessava uma radicalidade em relação à gramática. A ideia de falar da periferia é muito mais do que mostrar o local. É assumir radicalmente a forma que se fala, o corpo que é falado e toda a relação que existe ali - a musicalidade, o corpo, a fala, as coisas boas e coisas ruins. É muito mais uma ideia de falar com a periferia, um diálogo”, apontou, em entrevista ao Vozes do Brasil.

Nesta mesma linha atua o grupo Bongar, cria da Nação Xambá, do quilombo urbano Portão de Gelo, em Olinda. Samba de Gira (2016) e Ogum Iê (2017)  intercalam gravações de rituais religiosos de sua comunidade com as suas próprias canções, revelando, nas palavras do vocalista Guitinho, “a criatividade em parceria com o legado cultural que herdamos de nossos ancestrais” – ele ainda classifica sua música como “tradicional contemporânea”. Com o álbum Sonorosa engatilhado para 2018, o mestre de ciranda e maracatu rural de Nazaré da Mata, Anderson Miguel, 21 anos, é outra prova da tradição como um conhecimento vivo e força que se reinventa.

O funk é outra potência criativa neste assunto. Funkeiros estão discutindo BPM (batidas por minuto, a grosso modo, a velocidade das músicas), hibridizações musicais várias e ampliando suas paletas sonoras. No Rio de Janeiro, tal qual Bide fizera na década 1930, o DJ Polyvox, da favela Nova Holanda, desenvolveu sua própria gramática musical: gravou o som de uma garrafa pet batendo na porta do quarto para fazer a base do Tambor Coca-Cola, a batida musical do funk 150 bpm, a “putaria acelerada” que domina os bailes da juventude carioca.

Com o recém-lançado Action Lekking, Negro Leo ressalta estas conexões com a cultura “lelek” – em suas palavras, “a cultura de uma juventude empobrecida que dribla e resiste cada situação com suingue e alegria” e que manifesta-se em em fenômenos sociais contemporâneos como o rolezinho, o funk ostentação, as cotas raciais e o passinho. Quanto à vanguarda negra, ele assume que não busca “pesquisar o que formalmente poderia ir além do que está sendo produzido no entorno”. Mas saliente: “Tem algo mais vanguardista do que ser preto, mermão? Presta atenção no mundo, na realidade toda e na experiência da invisibilidade e me responde se tem algo mais vanguarda e sinistro do que ser preto”.

Este movimento – plural, heterogêneo e descentralizado por excelência – está sintonizado com trabalhos de outros artistas mundo afora, como os discos da saxofonista e artista multimídia Matana Roberts, as intalações de Emo de Medeiros, os tratados téoricos do coletivo Black Quantum Futurism, a poesia de Moor Mother. Contudo, consolidam-se sob a condição tipicamente brasileira em que a tradição e vanguarda se misturam em uma relação – uma vanguarda da retaguarda. Como afirma o escritor nigeriano Chinua Achebe, a tradição não é "uma necessidade absoluta e inalterável", mas a "metade de uma dialética em evolução - sendo a outra parte o imperativo da mudança".

O filósofo Gilles Deuleuze indica que a filosofia consiste em inventar conceitos. Neste sentido, traçar o plano de uma vanguarda negra no Brasil contemporâneo é pensar um afroperspectivismo: sair do modelo fetichista de vanguarda enquanto os destacamentos avançados da novidade artística, passando a tratá-la como a invenção de formas sensíveis da vida – o nó arte e vida. Uma política acionalista que rompe com o cogito cartesiano (toda existência humana subordinada ao pensamento; penso, logo existo) e que evoca outros saberes, outros corpos, outras histórias. Uma epistemologia outra. Como o baiano Diogo Moncorvo ao evocar um panteísmo afro em sua persona artística (Baco Exu do Blues) e clamar que “a Lei Áurea é todo verso que eu escrevo”, na música Esú. A vanguarda como jogo de cintura.

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