No início dos anos 1930, diante do crescimento das escolas de samba, os sambistas do Rio de Janeiro sentiam a necessidade de criar um batida mais acelerada para dar conta dos desfiles de rua. Valendo-se de suas habilidades técnicas de sapateiro, Alcebíades Barcelos, o Bide, resolveu “encourar” uma lata de manteiga de 20 quilos com papel de saco de cimento umedecido, criando assim o tambor de som grave conhecido como surdo. O resultado foi um verdadeiro lance de mestre: a partir da intuição e de uma percepção corporal, Bide transformou o samba e, com outros músicos do bairro do Estácio de Sá, desenvolveu uma linguagem nova e singular, distante do toque amaxixado de Donga.
Entretanto, categorias como “vanguarda cultural”, “música de invenção” e “inovação estética” não são atribuídas ao samba, mas sim – ou somente – ao Modernismo e à Semana de 22. Ao samba, gênero forjado na mão de negros descendentes de escravos, é destinado uma espécie de morte térmica: o paternalismo de uma “tradição”, tutela estratificante que enclausura todas as invenções do contemporâneo e engessa o agora sob a égide da museificação.
O caso do samba ilustra um dentre inúmeros apagamentos históricos das culturas afro-diaspóricas em um País que, historicamente, tentou varrer seu passado escravista para baixo do tapete – o Hino da Proclamação da República, em 1890, afirmava: “Nós nem cremos que escravos outrora/ Tenha havido em tão nobre País”. É um dos sintomas da escravidão e racismo que ainda reinam e, como o sociólogo Jessé de Souza argumenta em seu novo livro A Elite do Atraso, definem a sociedade brasileira – as nossas relações sociais, subjetividades, construções de valores etc. Em resposta a esse quadro, uma série de obras contemporâneas, do cinema à música, além de uma denúncia desta realidade, propõem um panorama de transe, delírio e sonho afrofuturista e pós-colonial – uma vanguarda negra contemporânea.
Misturando documentário e ficção científica lo-fi, o cineasta Adirley Queirós, da Ceilândia, Distrito Federal, traz uma história de negros vítimas de violência policial em busca de vigança contra o Estado brasileiro em Branco Sai, Preto Fica (2015). Um filme ruidoso, sujo e de corpos amputados – uma metáfora da própria cidade, da memória e da condição do negro.
Buscando a radicalidade, Adirley critica o modo fetichizado como a periferia costuma ser retratada. “Uma das primeiras questões era como a gente lidaria com esse corpo periférico. Interessava uma radicalidade em relação à gramática. A ideia de falar da periferia é muito mais do que mostrar o local. É assumir radicalmente a forma que se fala, o corpo que é falado e toda a relação que existe ali - a musicalidade, o corpo, a fala, as coisas boas e coisas ruins. É muito mais uma ideia de falar com a periferia, um diálogo”, apontou, em entrevista ao Vozes do Brasil.