Poucas artistas mereceram o título de diva tanto quanto Maria Callas. Seu talento extraordinário e vida marcada por triunfos e fracassos continuam a fascinar quatro décadas após sua morte, como mostra a peça Master Class, escrita por Terrence McNally. A obra ganhou adaptação brasileira com direção de José Possi Neto e Christiane Torloni no papel da cantora e é apresentada de hoje até domingo no Teatro RioMar.
Nascida nos Estados Unidos, mas criada na Grécia, terra natal de sua família, Maria Callas cresceu em um lar partido, fruto do casamento infeliz de seus pais. Guardava da mãe um ressentimento profundo, atribuindo a ela a privação de uma infância feliz, uma vez que, descoberto seu talento ainda criança, foi forçada a cantar desde cedo. Sua figura rechonchuda e problemas de visão ampliavam sua sensação de deslocamento social, em contraponto à irmã mais velha, para ela um modelo de beleza e, por isso, predileção da mãe.
Se a infância e a adolescência tiveram sabor amargo, a experiência com a dor lhe muniu com material para dar interpretações memoráveis a clássicos da ópera. O sucesso e a aclamação renderam o título de La Divina, mas também críticos ferozes e a perseguição da imprensa, que acompanhava de perto sua vida particular, das mudanças na aparência aos amores e os bastidores do trabalho.
Mudanças na sua voz e problemas pessoais contribuíram para um certo crepúsculo em sua carreira no final da vida. Neste período, entre 1971 e 1972, cerca de seis anos antes de sua morte, Maria Callas ministrou uma série de aulas magnas (master classes) na Juilliard School, prestigiosa escola de artes de Nova York. São essas aulas o mote da peça de Terrence McNally. Nela, Callas é apresentada como uma figura intensa, capaz de fomentar os sonhos dos alunos, incentivando-os a sempre melhorar, como também de repreendê-los de forma enérgica. Nos encontros com os pupilos, faz uma revisão de sua própria trajetória, confrontando suas frustrações e relembrando suas glórias.
“Master Class é uma comédia-dramática! Ela tem um humor muito refinado que provoca as pessoas na plateia. Callas se expressava com ironia, tinha um humor sofisticado, inteligente. A peça tem um texto lindo e sempre digo que esse espetáculo é uma sessão de autoajuda disfarçado (risos). Ele fala muito em superação e as pessoas saem muito motivadas a se apaixonar, acreditar nos seus sonhos”, afirmou Christiane Torloni sobre a peça, em entrevista por e-mail.
Na montagem, a atriz tem a oportunidade de interpretar uma artista que admira há décadas e também de retomar sua parceria com o diretor José Possi Neto, com quem trabalhou pela primeira vez em O Lobo de Ray-Ban, de 1988.
“Maria Callas chegou para mim há uns 30 anos, talvez. Eu e Possi ficávamos assistindo àqueles hard discs, uma mídia que nem existe mais, e ficava aos prantos vendo os vídeos dela. A maneira como ela entendeu as personagens dela, o olhar era como o de um pintor, que te faz olhar o mundo de outra maneira. É muito incrível porque quando você se aproxima da Callas, a história dessa mulher é de superação, desde o nascimento dela, pois ela foi recusada pela mãe nos primeiros dias. Então, esse é um espetáculo para você se apoiar em alguém que, mais do que tudo, não desistiu do seu belo”, lembra.
Sobre voltar a ser dirigida por Possi Neto, Torloni é enfática em afirmar a conexão que ambos têm nos palcos e que essa dinâmica ajudou a transformar a forma como ela atua.
“Possi se tornou meu grande diretor e inspirador. Minha atuação ficou muito mais leve depois desse ponto de virada. Você percebe que tudo tem que vir do mesmo lugar: quando criança, você aprende a se movimentar antes de falar. Essa ideia de se mexer ininterruptamente em cena, andando sem marcas, vem desse meu trabalho com o Possi. Meus espetáculos posteriores com ele foram todos de um teatro muito físico: em Salomé (1997), eu parecia estar andando sobre a água. Para mim, é um tipo de teatro que comunica mais com as pessoas e expressa melhor minhas necessidades emocionais. Às vezes, a palavra é pesada, e o sensorial a transporta. Sem que o público perceba, o texto está sendo entregue por uma outra ferramenta, que são as sensações. Assim, não precisa se preocupar com ‘ter que entender’ a peça: ele a sente”, enfatiza.
Além de Christiane, o elenco de Master Class é formado por Raquel Paulin e Julianne Daud (alternantes), Laura Duarte, Jessé Scarpellini, Rafael Marão e Rodrigo Filgueiras. A direção musical é do maestro Fábio G. Oliveira.
Além do teatro e de sua longeva carreira na televisão (ela estava no ar este ano com a novela O Tempo Não Para), Christiane Torloni recentemente se aventurou por uma nova forma de expressão: a direção para cinema. Ela dirigiu, ao lado de Miguel Przewodowski, o documentário Amazônia, O Despertar da Florestania, lançado no início do ano. A temática não poderia ser mais atual, diante das recentes queimadas no norte do País e das mudanças em legislações ambientais e de proteção aos povos originários.
“O documentário, que assino a direção com o Miguel Przewodowski, é resultado de uma experiência que tive quando fiz abaixo-assinado pela preservação da Amazônia, em 2008. Ele traz encontros incríveis que tive durante o abaixo-assinado, quando conseguimos mais de um milhão e 200 mil assinaturas – um recorde no Brasil -, e depois quando a gente fez o processo da Renca pra impedir o Temer de vender metade da Amazônia. O que falta para a Amazônia é uma política de Estado, não de governo. O último estadista que vimos no Brasil foi Fernando Henrique Cardoso. Nem tudo que ele fez foi bom ou ruim, mas se não fosse por sua iniciativa firme, hoje a Amazônia estaria mais desprotegida. A Amazônia é maior que um partido. Não tem nada mais importante para a gente que a nossa casa, o nosso ninho, ele que agasalha. Só que a Amazônia é o ninho comum, como disse o papa Francisco.”
Sobre a situação da cultura no Brasil, ela diz enxergar um retrocesso. “Você passa anos aprimorando as leis de incentivo, que precisam sempre ser aprimoradas, anos negociando com empresas e mostrando para elas a importância do incentivo cultural – um dever, pois sem cultura não existe identidade – e agora as vemos com medo de ter seu nome associado a uma lei que foi satanizada. A arte é uma ciência política, e afinal não tem como não ser. É um fórum por onde passam as grandes ideias, onde se toca a filosofia, onde há liberdade de pensamento. Acho que é disso que tantos têm medo”.