Em manifestação recente do movimento Marcha das Vadias, um cartaz dizia: quantas coisas você já deixou de fazer por ser mulher? A indagação, pertinente, expõe a violência à qual o gênero feminino está exposto diariamente, perpetuada por uma cultura machista que naturaliza esses abusos. Nas artes, a representação do estupro se situa num perigoso espaço que pode ser percebido tanto como um alerta quanto como um estímulo à sua disseminação.
O limite é tênue e parece haver uma dificuldade entre artistas para identificar quando termina a denúncia e começa a espetacularização. O tema, urgente, está mais uma vez em voga, desde que veio à tona o abuso sexual cometido por mais de 30 homens contra uma adolescente, na semana passada, no Rio. A repercussão do caso não deixou de fora a possível influência da produção cultural na banalização da violência contra a mulher.
“O termo cultura do estupro tem sido encarado por muitas pessoas, principalmente depois dos últimos acontecimentos, como ‘exagerado’. O fato é que nós temos discursos que atravessam nosso cotidiano e não conseguimos nem sequer nos dar conta. Esses discursos podem ser visíveis a uma crítica menos superficial, mas existem aqueles que são muito mais devastadores: os que nos atravessam de forma subliminar, que são introjetados no nosso cotidiano sem que a gente perceba”, aponta a historiadora Naymme Moraes. “A arte como qualquer outra relação social ajuda a difundir essa cultura, mais especificamente o que chamamos de indústria cultural, o cinema, algumas músicas, mas principalmente na propaganda”.
Uma das séries mais bem-sucedidas da atualidade, Game of Thrones costuma chocar por seu forte apelo à violência e à sexualidade. Juntos, esses dois elementos geram um resultado problemático: a banalização das cenas de estupro. Até a quinta temporada, exibida no ano passado, as sequências de abusos sexuais contra mulheres se tornaram comuns, gerando críticas entre os fãs. O problema foi considerado mais grave porque, em alguns casos, os estupros exibidos na série não estavam nos livros que originaram a história, sendo utilizados pelos produtores para aumentar a audiência.
Estupros estão no cinema, na TV e também na música pop, nem sempre com uma função educativa. “Um filme sobre violência serve para chamar atenção ou para difundir? É uma dúvida que não acaba nunca. Mas fica claro que há um problema quando de certa forma se isenta um estuprador e culpabiliza a vítima”, afirma a crítica de cinema Susana Schild.
Na sétima arte, a violência contra mulher é recorrente. O francês Irreversível (2002), de Gaspar Noé, provocou polêmica pela longa cena de estupro da personagem vivida por Monica Bellucci; da mesma forma que muita gente não aceitou bem o estupro coletivo na personagem de Dira Paes no brasileiro Baixio das Bestas (2006), de Cláudio Assis. Já no clássico feminista Thelma & Louise (1991), de Ridley Scott, a violência sexual contra a mulher é combatida pelas próprias protagonistas, que fazem justiça com as próprias mãos e se vingam do estuprador. A cena, apesar de controversa, é considerada icônica na luta contra a naturalização do estupro no cinema.
Na literatura nacional, um dos nomes mais celebrados é o de Nelson Rodrigues. O pernambucano, conhecido por tratar de temas polêmicos (e também permear suas obras com cunho machista), retratou em Bonitinha, mas Ordinária, a história de Maria Cecília, jovem de classe média que é estuprada por cinco homens e cujo destino, a partir desse fato, é tratado de forma hipócrita pela família, mais preocupada com a “reputação” do que com o bem estar emocional e físico da jovem. A obra já foi adaptada para o cinema e para o teatro e até hoje causa controvérsia.
“A superexposição e o uso indiscriminado do corpo feminino como lugar de desejo, de liberdade masculina, cria essa ilusão de que estamos aqui para servir ao outro. O estupro especificamente passa por uma relação de poder, não de desejo sexual. Ele sempre foi arma de guerra desde a antiguidade. A cultura do estupro é a naturalização de supostas diferenças entre os sexos no sentido do desejo, como por exemplo, ‘o homem tem mais necessidades’, ‘é biológico’, naturalizando a desigualdade, fetichizando a mulher, tornando-a objeto de desejo”, observa Naymme.
Campo em que o ponto de vista masculino historicamente predomina, nos últimos anos a música popular vem sofrendo ruidosos questionamentos naquilo que poderia ser considerado apologia à violência sexual contra mulheres. E eles estão presentes no imaginário popular, como no sucesso Blurred Lines, do cantor Robin Thicke (de 2013, do refrão “eu sei que você quer” e cuja letra tenta caracterizar o consenso no sexo como algo 'indefinido'”.
Uma das maiores vozes do pop, Lady Gaga, que já revelou ter sido vítima de estupro, causou controvérsia ao lançar a música Do What You Want (faça o que quiser, em tradução), com o cantor R. Kelly, acusado de vários casos de abusos sexuais nos EUA. A polêmica tomou proporções ainda maiores quando soube-se que o clipe da música mostraria Gaga sendo sedada pelo artista, que levaria para o âmbito literal a letra da canção. O vídeo foi proibido porque a gravadora teria o considerado uma “propaganda pró-estupro”. A controvérsia, no entanto, fez Gaga de reposicionar e, recentemente, ela lançou a música Til It Happens To You, denunciando a violência sexual e incentivando as vítimas a denunciarem os agressores. A faixa chegou a ser interpretada por Kesha, que atualmente move processo contra o produtor Dr. Luke, a quem acusa de tê-la violentado sexual e psicologicamente.
No Brasil, a grande polêmica é com o funk Baile de Favela, uma das músicas mais populares do ano no país, em que o MC João, da periferia de São Paulo, versa: "Ela veio quente, hoje eu tô fervendo / quer desafiar, não tô entendendo / mexeu com o R7 vai voltar com a xota ardendo”.
“É cultura do estupro em ritmo de funk”,denunciou a cantora Fernanda Abreu. “Mas continuo me perguntando se isso não é reflexo da sociedade machista brasileira. Esses funks de putaria e proibidões acabam sendo um espelho da carência total de educação, cultura e amor. Por outro lado temos estudante de medicina da USP e de várias outras universidades que disseminam a cultura do estupro. Todos disponibilizando imagens na internet, certos da impunidade, que é o maior alimento para a disseminação dessa cultura do estupro no Brasil”, enfatiza.
No combate ao machismo e à cultura da violência contra a mulher, revisar os discursos e colocar em pauta a questão faz-se cada vez mais necessário. “Há uma naturalização da violência na nossa sociedade, onde a colonização começou através da violência do corpo do outro. É importante olhar para esses discursos e refletir sobre eles e questioná-los. Ensinar desde cedo nas escolas a combater essa mentalidade”, reforça a historiadora.