Gênio, visionário, reacionário, serviçal dos militares. O adjetivo varia de acordo com a matiz ideológica de quem o profere. Aqueles classificados de direita o enaltecem tratando-o de “doutor”, “ministro”, “diplomata”. Os de esquerda o menosprezam com o mais que pejorativo apelido de “Bob Fields”, por ser “entreguista”. Se vivo fosse, Roberto Campos, um dos mais célebres pensadores brasileiros do século 20, faria 100 anos neste 2017. Numa época eivada de debates rasos e raivosos, o polemista intelectual Roberto Campos faz falta.
Para além de deferências ou depreciações, Roberto de Oliveira Campos foi um homem de coragem. Nasceu em 1917, em Cuiabá, e morreu em 2001, no Rio de Janeiro, com 84 anos e tido como o maior defensor do liberalismo econômico clássico no Brasil. Ainda jovem, porém, flertou com a teoria de John Maynard Keynes, na época do pós-guerra em que nem os EUA do New Deal de Franklin Roosevelt era uma economia liberal. Como se tratava da reconstrução do mundo, Campos acreditava no planejamento estatal. Nos anos 40, participou, ao lado do economista brasileiro Eugênio Gudin da Conferência de Bretton Woods, responsável pela criação do Banco Mundial e do FMI. A conferência também gerou a semente para a criação, muitos anos depois, em 1993, da Organização Mundial do Comércio (OMC).
O tempo passou e no final da vida Campos era um convicto seguidor da escola austríaca, cujo símbolo maior é Friedrich August von Hayek (assista ao vídeo abaixo). Entendia que a economia funcionaria melhor se houvesse estabilidade de preços, segurança jurídica, menos controle estatal, estímulos ao empreendedorismo, privatizações, concorrência, reformas etc. Trata-se de uma visão moderna de mundo, sobretudo num momento em que o País amarga índices recordes de desemprego e três anos de recessão resultantes de administrações contrárias ao modelo defendido por Campos.
Como a história é feita de paradoxos, vale lembrar que o economista defendeu o golpe militar de 1964 e participou dos governos de Castelo Branco, Ernesto Geisel e João Figueiredo. Contribuiu, portanto, não apenas com ditaduras, mas também com administrações altamente estatistas.
A contradição é clara também porque o ideário liberal clássico só prospera com liberdades individuais.
Sempre que alguém o tentava emparedar com esta contradição na sua biografia, Campos, frasista brilhante que era (leia algumas abaixo), lançava mão de uma de suas tiradas: “Contradições são características de homens inteligentes, mulheres bonitas e países jovens.”
Eis que durante sua fase como ministro do Planejamento de Castelo Branco, já na ditadura, Campos foi contra a instalação da Zona Franca de Manaus, mas não tinha muito o que fazer. Os militares enxergavam a região como uma zona estratégica e não aceitavam o contraditório. “Ele achava que a Zona Franca era uma aberração, um privilégio. Era a favor de algo maior, inclusive abrangendo Suape, que na época era apenas um projeto. Manaus ficaria com o polo de eletroeletrônico e informática e em outros locais se criariam Zonas de Processamento e Exportação (ZPEs), incluindo Suape, Camaçari na Bahia, Sepetiba, no Rio, e até Teófilo Ottoni, em Minas. Campos queria justamente replicar aqui o modelo dos Tigres Asiáticos. Ele, como cidadão do mundo, previu que os asiáticos iriam acertar”, conta o jornalista Aristóteles Drummond, amigo de Campos, que participa do livro Lanterna na Proa, organizado pelo presidente do IBGE, Paulo Rabello Castro, e pelo jurista Ives Gandra da Silva Martins, também em homenagem aos 100 anos de Campos.
Drummond lembra que Campos era irônico. “Me disse que não votaria em José Serra para presidente. Perguntei por quê. E ele ‘a única vez em que Serra se dirigiu a mim foi na Revisão Constitucional de 1993’”.
Mas porque Serra o havia procurado? Interessado em suceder FHC, Serra tinha o projeto de extinguir a Zona Franca, sabia que Campos havia sido contra desde a origem e veio pedir apoio. Campos ficou perplexo. “Ele disse a Serra: ‘deputado, a Zona Franca emprega 100 mil pessoas com mão de obra de qualidade, Manaus não tem outra fonte de renda. Fui contra instalar e agora sou contra tirar...E esse Serra ainda dizia que eu sou contra o trabalhador.’”
Tantas participações em governos criaram uma frustração crescente em Roberto Campos, que já no fim da vida não escondia a decepção de ver ideais serem tragados por ineficiência, politicagem e populismo. Sempre que participava de governos, era no afã de buscar a modernização da administração pública.
Uma de suas criações, o ICM (que mais tarde virou ICMS), trouxe ao Brasil o conceito de imposto de valor agregado. “Hoje o Brasil é mercado comum”, disse Campos ao ver sua ideia aprovada, apesar de seu conceito ter sido distorcido ao longo dos anos.
A presença na burocracia governamental também mostra, segundo a economista pernambucana Tânia Bacelar, que Roberto Campos não era apenas um teórico. “Era um pragmático”, diz Tânia, que participou de dois governos Miguel Arraes e sempre teve uma inclinação ideológica à esquerda. Ela lembra que foi Campos quem criou as terminologias monetaristas e estruturalistas para classificar os economistas. Os primeiros são os ortodoxos como ele. Os outros, aqueles que priorizam o crescimento, como ela. Cepalina clássica, diante da divergência de ideias, Tânia já o teria chamado de Bob Fields? Ela sorri abertamente e diz que não. “Minha formação é diferente, mas toda minha geração estudou com os livros dele. Era brilhante." Em 17 de abril de 2001, Campos morreu. Como uma lanterna na popa, deixou uma rota iluminada para os que vêm atrás de sua nau.