Mais de quatro décadas depois da morte de Vladimir Herzog, em 24 de outubro de 1975, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) condenou hoje (4) o Estado brasileiro pela falta de investigação, julgamento e sanção dos responsáveis pela tortura e assassinato do jornalista. O Brasil terá de seguir uma série de determinações do tribunal.
Para a Corte, o Estado é responsável pela violação ao direito de “conhecer a verdade e a integridade pessoal” em prejuízo dos parentes de Herzog. O documento menciona a mãe, Zora; a mulher, Clarice; e os filhos, André e Ivo Herzog.
A Corte ordenou o Estado a reiniciar, com a devida diligência, a investigação e o processo penal cabíveis pelos fatos ocorridos em 1975 para identificar, processar e, se necessário, punir os responsáveis pela tortura e morte de Herzog.
Também determinou reconhecer, sem exceção, que não haverá prescrição, por se tratar de crimes contra a humanidade e internacionais.
A sentença determina ainda a adoção de medidas para que "se reconheça, sem exceção, a imprescritibilidade das ações emergentes de crime contra a humanidade" e que a União pague US$ 180 mil à família Herzog - os representantes haviam pedido US$ 4,9 milhões. Também determinou que o Brasil pague US$ 25 mil de custas processuais. O País terá um ano para cumprir a decisão.
O tribunal internacional concluiu ainda que o “descumprimento do direito de conhecer a verdade” foi causado pela versão falsa da morte de Herzog, da negativa, por parte do Estado, de entregar documentos militares e da ausência de identificação dos responsáveis.
"A CorteIDH determinou que os fatos ocorridos contra Vladimir Herzog devem ser considerados como um crime contra a humanidade, como é definido pelo direito internacional", diz a sentença de cinco páginas.
O tribunal informou ainda que, devido à falta de investigação, o Estado brasileiro também violou os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial dos familiares da vítima, identificados como Zora, Clarice, André e Ivo Herzog.
Em outro trecho, o documento destaca a tensão vivida no Brasil no período em que Herzog morreu, principalmente os atos das forças policiais “cometidos em um contexto sistemático e generalizado de ataques à população civil”.
O caso Herzog foi apurado pela primeira vez por um Inquérito Policial-Militar (IPM). O Exército concluiu na época que o jornalista se matou. Em 1979, em ação movida pela família de Herzog, a Justiça Federal decidiu que o jornalista morrera em razão de "causas não naturais", que sua prisão havia sido ilegal e que a perícia feita para o IPM havia sido falsificada".
Em entrevista, o general Ernesto Geisel, então presidente na época dos fatos, afirmou que a morte de Herzog foi um assassinato. Em 1992, o Ministério Público pediu a reabertura do caso, mas a Justiça determinou o seu encerramento por considerar que os autores do crime - agentes do DOI - haviam sido anistiados.
Dezessete anos depois, a Justiça Federal mandou arquivar nova apuração criminal sob as alegações de que se tratava de coisa julgada e de que os crimes estariam prescritos. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal declarou constitucional a Lei de Anistia.
No processo, aberto na Corte Interamericana pela família de Herzog, a defesa do Brasil alegou em sua defesa que a prescrição do crime, o fato de ele ser "coisa julgada" e os princípios de irretroatividade da lei penal e de non bis in idem (princípio pelo qual uma pessoa não pode ser punida duas vezes pelo mesmo fato) estavam de acordo com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
Mas, para a Corte, a decisão do STF não considerou a imprescritibilidade dos delitos contra a humanidade. Além disso, por força do tratado, o Brasil seria obrigado a cumprir as decisões da Corte. "É uma decisão importante e histórica. E um passo para que a nossa sociedade decida se vai ou não respeitar os tratados internacionais que assina", disse Ivo Herzog, filho do jornalista morto. Ele quer entregar cópia da decisão à ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo.
Durante o processo, o Brasil admitiu que houve prisão arbitrária, tortura e morte de Herzog, causando “severa dor” à família e reconhecendo responsabilidade.
"Apesar de o Brasil ter empreendido diversos esforços para satisfazer o direito à verdade da família do senhor Herzog e da sociedade em geral, a falta de um esclarecimento judicial, a ausência de sanções individuais em relação à tortura e ao assassinato de Vladimir Herzog (...) violentou o direito de conhecer a verdade em prejuízo de Zora, Clarice, André e Ivo Herzog", indicou a sentença.
A CorteIDH, com sede em São José, na Costa Rica, faz parte da Organização dos Estados Americanos (OEA). As resoluções devem ser acatadas de forma obrigatória.
Em nota, o Ministério dos Direitos Humanos informou que "dará cumprimento integral à sentença".
"Este ministério reafirma o seu compromisso com as políticas públicas de direito à memória, à verdade e à reparação, reconhecendo a sua importância para a não repetição, no presente, de violações ocorridas no passado, tais como as práticas de tortura e limitações à liberdade de expressão", diz o texto.
A sentença, "ainda que condenatória ao Estado brasileiro, representa uma oportunidade para reforçar e aprimorar a política nacional de enfrentamento à tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, assim como em relação à investigação, processamento e punição dos responsáveis pelo delito", acrescenta a nota.