Nos últimos três anos, mais de 300 mil empregados domésticos perderam o registro na carteira de trabalho, mesmo após a regulamentação dos direitos da categoria. No fim do ano passado, o número de profissionais registrados foi impactado pela crise e teve seu pior resultado desde 2015. Esse contingente caiu 15% no período, de 2,1 milhões para 1,78 milhão
Enquanto o total de empregados domésticos registrados caiu, a quantidade de trabalhadores sem carteira assinada cresceu 7,2%, indo de 4,2 milhões no fim de 2015 para 4,5 milhões em dezembro do ano passado, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do IBGE, separados pela consultoria LCA.
Em 2013, os benefícios para os domésticos passaram a ser previstos na Constituição, com a aprovação da chamada PEC das Domésticas. Essas medidas foram regulamentadas dois anos mais tarde, garantindo para esses trabalhadores direitos como jornada de trabalho, horas extras e Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que, até 2014, as domésticas mensalistas tiveram aumento na formalização e redução na jornada de trabalho. A mudança constitucional, mesmo pesando no orçamento das famílias, ajudou a regularizar o trabalhador.
"Parecia que tudo ia melhorar", lembra a sergipana Clara Dias, de 33 anos. "Depois de 15 anos como doméstica, eu ia poder tirar férias com o meu marido, que é motorista de ônibus. A gente comemorou o quanto pôde, mas durou menos do que eu imaginava. Em 2016, perdi o emprego e voltei a ser diarista."
Os dados da Pnad apontam que em dezembro de 2015, com a regulamentação da PEC, o número de trabalhadores domésticos com carteira assinada atingiu 2,1 milhões, melhor resultado da série histórica. No ano seguinte, quando a recessão já corroía a renda das famílias brasileiras e se refletia no mercado de trabalho, a formalização dos domésticos começou a retroceder e ainda não se recuperou.
"Para quem estava há mais tempo no emprego, foi a oportunidade de conquistar direitos", diz o economista Cosmo Donato, da LCA. "O efeito esperado era que o número de famílias com empregados em casa caísse, devido ao aumento de custos, mas só no longo prazo."
O pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas, Daniel Duque, avalia que o aumento da formalização das empregadas domésticas de 2013 a 2015 se deveu a uma maior conscientização por parte do empregador.
"Infelizmente, a crise coincidiu com a regulamentação." Ele avalia que, com a recuperação do mercado de trabalho, a formalização das domésticas deve voltar a crescer, ainda que a função tenda a ser mais rara nas casas em algumas décadas.
O mercado de trabalho ainda sente o impacto da economia, que andou para trás em 2015 e 2016. No ano passado, apesar de a economia ter crescido pelo segundo ano seguido, o desemprego atingiu 12,8 milhões de brasileiros. A crise tirou empregos de trabalhadores de diferentes classes sociais, fez crescer o endividamento, reduziu a renda e também mudou hábitos.
"As famílias foram profundamente afetadas pela crise de 2015. A possibilidade de ter uma empregada fixa em casa passou a pesar mais no orçamento, virou luxo. O movimento que muitas famílias fizeram foi trocar a mensalista por uma diarista duas vezes por semana", diz a professora Hildete Pereira de Mello, da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Em janeiro do ano passado, Aline Ladvocat, dona de uma agência de empregadas domésticas, no Rio, achava que teria de fechar as portas. A empresa, que atendia apenas famílias de classe alta, como a do empresário Eike Batista, teve de se mudar para um espaço menor e passar a oferecer o serviço para clientes de todos os perfis.
"Há três anos, a empregada doméstica escolhia para quem trabalhar e estipulava o preço. Uma parte dos clientes trocou a empregada por uma diarista, saiu do País ou foi presa em alguma operação da Justiça. Agora, a gente passou a dar graças a Deus quando alguém liga pedindo uma empregada doméstica. Os salários delas estão sem reajuste desde 2016."
"Com a regularização do emprego doméstico, era esperado que o total de trabalhadores exercendo esse tipo de função caísse com o tempo, porque muitas famílias tiveram de rever os gastos. Também tem a questão cultural, com as novas gerações deixando de ter esse tipo de empregado em casa. O que a crise fez foi acelerar esse processo", avalia o economista Cosmo Donato, da LCA.
Há duas décadas fazendo serviços domésticos em São Paulo, a baiana Marivanda Gomes, de 48 anos, chegou a trabalhar como doméstica na casa de uma família. No entanto, o emprego com carteira assinada durou pouco. Com o tempo, a possibilidade de ter um trabalho fixo ficou mais distante e ser diarista voltou a ser a única opção para continuar trabalhando.
"Há uns três anos era bem mais fácil conseguir emprego em uma casa. Os patrões corriam atrás para contratar uma empregada que tivesse experiência e eu nunca ficava parada. De uma hora para outra, tudo mudou. A concorrência aumentou, o preço da diária parou de acompanhar os gastos do mês e ficou parado lá em 2016."
Agora, ela conta que para encontrar um serviço é cada vez mais difícil e as semanas em que consegue trabalhar dois dias são comemoradas. "A gente consegue cada vez menos uma diária. A família que chamava toda semana, ultimamente fica 15 dias sem chamar. O serviço acumula, mas os patrões não conseguem ter alguém cuidando da casa todo dia."
Ela também já trabalhou como manicure e cozinheira, mas sempre preferiu trabalhar em residências. "Depois que a gente se acostuma com os hábitos da família, fica fácil. Ser diarista não é ruim, o único problema é que está cada dia mais difícil conseguir trabalho."
Giovanni Silva, gerente de seleção na agência de empregadas domésticas em que Marivanda está cadastrada, conta que, das 300 candidatas que fazem parte do banco de dados da empresa, só 25 estão empregadas. "As outras apenas tentam se virar."
"O pessoal está sem renda, ninguém quer arcar com os custos de ter uma despesa a mais. Nos últimos três anos, houve aumento de 10% nas vagas para diaristas. Os patrões que tinham uma mensalista há anos não podiam mais ter uma empregada em casa todo dia."
Antes da recessão, a falta de mão de obra fez com que as agências começassem a procurar empregadas domésticas entre imigrantes e refugiadas de países como Haiti, Síria, Congo e Camarões, que vieram tentar a vida no Brasil. "Mas foi um sonho de verão. O mercado virou muito rápido e as estrangeiras mal tiveram tempo de serem treinadas", recorda.
Silva lembra que, em 2015, a busca por uma empregada doméstica chegava a dar briga entre os clientes. "As melhores eram disputadas. Elas podiam negociar tranquilamente o preço e as condições de trabalho. A maioria até dizia que não trabalhava em feriados ou fins de semana."
Agora, diz, as candidatas ligam atrás de qualquer oportunidade de trabalho.