Pela primeira vez em Pernambuco, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) e a Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara (CEMVDHC) tiveram acesso às instalações policiais e militares onde prisões ilegais, torturas e assassinatos foram cometidos, nos anos de ditadura.
As visitas de reconhecimento ocorreram na manhã de ontem, nas sedes dos extintos Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi). Nos locais, funcionam hoje, respectivamente, a Associação dos Delegados de Polícia de Pernambuco, na Rua da Aurora, e um anexo do Hospital Militar de Área do Recife, na Rua do Hospício.
Durante as duas diligências, algumas vítimas acompanharam os membros das duas comissões, tentando identificar os locais onde foram detidas, há cerca de quarenta anos, e prestando depoimentos. Uma boa área dos edifícios está bastante descaracterizada, e parte das celas do Dops foram demolidas e transformadas em estacionamento.
Na primeira parte do evento, o secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco, Paulo Moraes, apresentou a proposta do Memorial da Democracia, espaço de memória que deverá ser construído no lugar do atual Departamento de Repressão ao Narcotráfico (Denarc), na rua da União, em frente ao portão por onde os presos políticos eram levados ao Dops. Na cerimônia, o chefe da Polícia Civil de Pernambuco, Osvaldo Morais Júnior, também esteve presente e declarou seu apoio às comissões. “Respeitamos as garantias e direitos individuais de todos, inclusive dos presos, e em nosso entendimento não cabe tortura no trabalho da Polícia”, afirmou.
Já na visita ao antigo Doi-Codi, houve um pequeno tumulto pelo fato da entrada da imprensa e de três ex-presos políticos (José Nivaldo Júnior, Edival Nunes Cajá e Antônio de Campos, que é presidente da Associação Pernambucana de Anistiados Políticos - Apap) não ter sido autorizada pelo comando militar, sob a justificativa de que o Ministério da Defesa exigiria credencimento prévio. O restante da comitiva, contudo, foi recebido pelo comandante militar do Nordeste, general Manoel Pafiadache; pelo comandante da 7a Região, general Márcio Heise; e pelo diretor do Hospital Militar, general Gilberto Pontes Netto.
“Foram momentos muito importantes, que permitiram às vítimas reconhecer os locais onde foram detidas e relembrar o espaço físico e outras circunstâncias ligadas ao período”, disse o coordenador da CNV, Pedro Dallari. “Do nosso ponto de vista, as visitas tiveram êxito e a perícia realizada foi integralmente gravada, ficando esse material futuramente à disposição do público”, detalhou.
Quatro ex-presos políticos (Marcelo Mesel, Alanir Cardoso, Lilia Gondim e José Adeildo Ramos) percorreram o espaço que foi incorporado ao hospital e puderam relatar as degradações físicas e morais sofridas.
Lilia, que na época em que foi ilegalmente presa estava grávida de dois meses, foi chutada, recebeu choques e foi mantida seminua durante todo o tempo de detenção.
José Adeildo, que ficou surdo de um ouvido por conta dos “telefones” (pancadas na cabeça) que recebeu, lembrou que perdeu 15 anos de sua vida, “praticamente toda a juventude”, entre detenções irregulares e a clandestinidade.
“Já perdoei meus algozes, mas as novas gerações merecem que esse período seja esclarecido”, reforçou Marcelo Mesel.
Visivelmente emocionado, Alanir Cardoso frisou que há exatos 40 anos estava sofrendo todo tipo de tortura dentro dos muros da instituição militar: “Eu sabia que não ia encontrar as instalações preservadas e, muito menos, as pessoas, mas você se lembra do que sofreu, de cada um dos meus torturadores, os quais já morreram. A visita valeu a pena, porque é preciso preservar e reconstruir a memória da verdade no Brasil, e passar a história a limpo para tirar lições e consolidar a democracia”.