Imagine uma família brasileira na qual R$ 9,00 de cada R$ 10,00 que os pais ganham já estão comprometidos com o pagamento da escola dos seus filhos, das contas de água e de luz, do aluguel e do salário da empregada doméstica. Esse arrocho no orçamento é o mesmo que acontece com as contas do País. De acordo com o Tesouro Nacional, 93,7% do total de despesas de 2017 era considerada engessada. Isso significa que a destinação desses gastos é definida em lei e não pode ser modificada pelo governo. É o caso da folha de pagamento dos servidores públicos e dos benefícios previdenciários. Parte desse problema é culpa da Constituição de 1988.
Direitos criados pelo texto, por mais legítimos que sejam, geraram gastos para o poder público. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostra que entre 1986 e 2016 as despesas primárias (gastos com pessoal, custeio, investimento...) da União avançaram de 12,7% para 19,5% do Produto Interno Bruto (PIB). Fundos constitucionais e programas criados depois de 1988, como o Bolsa Família, gastam hoje o equivalente a 2,23% de tudo o que é produzido no País.
“Nós criamos uma estrutura de bem estar social que trouxemos das economias europeias. Só que nós temos bem menos dinheiro. Na realidade, nós somos uma economia pobre. O nosso PIB per capita, ou seja, o volume de renda que a gente consegue gerar por pessoa, é quase US$ 8,8 mil ao ano. A Alemanha consegue gerar quase US$ 42 mil ao ano por cabeça. A nossa renda per capita é algo em torno de 4 ou 5 vezes inferior ao PIB per capita alemão. É como se nós almejássemos ter um padrão de consumo de serviços públicos de uma família que ganha R$ 20 mil por mês; só que nós ganhamos R$ 4,5 mil. Essa conta não fecha”, explica Felipe Serigatti, professor de economia da FGV.
Para fazer a conta fechar, o governo teve que cobrar mais impostos. Entre 1990 e 2016, a carga tributária do País cresceu de 28,55% para 32,38% do PIB. Isso significa que o poder público consome quase um terço de tudo o que é produzido no País.
Lembra da família que nós falamos no início do texto? Com um orçamento tão apertado, eles não podem comprar uma comida melhor para os filhos, nem pagar uma consulta de emergência para os avós. Provavelmente vão ter que se endividar para pagar as contas. Infelizmente, esse também é o Brasil. Em 2017, o governo federal teve um déficit de R$ 124,4 bilhões. Este ano, as contas também devem fechar com um saldo negativo de R$ 149,6 bilhões.
É por esse cenário que as reformas na economia se tornam urgentes. A da Previdência, cujo déficit representa 2,8% do PIB, seria a primeira. Por isso, cada candidato à Presidência da República tem uma proposta diferente para acabar com o déficit de R$ 268,8 bilhões nos regimes de aposentadoria; maior valor desde o início da série histórica em 1995. Todas exigem emendas à Constituição. O certo é que quanto mais demorarmos a encontrar uma solução, mais duras serão as medidas que precisarão ser adotadas.
“A reforma da Previdência é necessária. É preciso haver um entendimento sobre os direitos sociais e a cidadania relacionados à Constituição. Nós estamos com o aumento da carga tributária no limite. A sociedade reage a isso. E esse é um gasto que cresce a cada ano, até pela composição da sociedade brasileira, que fica mais velha, vive mais e tem mais saúde. Isso mostra que a Previdência tem que ser discutida. É um direito social que a Constituição prevê, mas que já não se paga”, argumenta o professor de história econômica do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) Vinícius Müller.
De acordo com Müller, dois pontos precisam ser observados para tentar viabilizar uma reforma da Previdência. O primeiro é como esse tipo de regra afeta de forma diferente pessoas de várias regiões de um País que já é muito desigual. Outro é que as mudanças precisam se debruçar também sobre as aposentadorias de grupos com interesses específicos, como o Judiciário e as Forças Armadas.
Para a economista Tânia Bacelar, sócia da consultoria Ceplan e ex-secretária da Fazenda de Pernambuco, o problema é mais o contexto econômico em que a Constituição passou a ser aplicada do que o que ela diz. “A realidade mudou. O Brasil precisa de políticas sociais, tem como financiar essas políticas, mas o que aconteceu é que a conjuntura que foi se desdobrando foi desfavorecendo o modelo de financiamento. No modelo de Previdência e assistência social vários impostos aos quais ele está atrelado, hoje, são usados para pagar outras coisas, a exemplo das contribuições sociais”, explica.
Membro do Conselho Federal de Economia, Fernando de Aquino defende que a Constituição trouxe mais benefícios do que problemas para a economia. “Ela melhorou a vida dos mais pobres, que são quem precisam de uma ação maior do Estado. Ela garantiu recursos para a educação pública e para a saúde pública, que melhoraram muito. E lançou as bases para dois outros momentos importantes de melhoria da economia: o Plano Real nos anos 1990 e o foco nos gastos sociais dos anos 2000. De fato, ela exige uma série de gastos que deixa muita coisa presa. Isso tem um lado bom porque garante recurso para muitas áreas importantes. Mas ela também deixa uma certa camisa de força dentro do equilíbrio fiscal. Agora, nada que leve a inviabilizar a gestão”, justifica.