Em meio à polêmica sobre os mortos do período militar (1964-1985), devido às declarações do presidente Jair Bolsonaro (PSL) sobre o desaparecido político pernambucano Fernando Santa Cruz, o conversou com a procuradora da República Eugênia Augusta Gonzaga Fávero em duas oportunidades na semana passada.
Primeiro, na noite da última quarta-feira (31/7), por telefone, quando ela ainda era presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) do Ministério dos Direitos Humanos, e temia pela iminente destituição do cargo. Na manhã seguinte, quinta-feira (1/8), saiu o decreto do presidente trocando quatro integrantes do colegiado, ela incluída.
À tarde, já como ex-presidente da CEMDP, ela falou ao programa Balanço de Notícias, da Rádio Jornal, sobre a decisão do mandatário, os principais resultados obtidos até hoje no trabalho de localização e identificação dos corpos, e sobre o que espera para o futuro do trabalho da comissão, que agora conta com integrantes escolhidos por afinidade ideológica com o grupo do presidente. Eis os principais trechos das duas entrevistas.
A comissão especial foi criada em 1995 (lei 9.140, na época do então presidente da República Fernando Henrique Cardoso) com a finalidade de reconhecer as vítimas como pessoas que morreram por perseguição do Estado durante a ditadura. Muitas famílias precisavam resolver questões jurídicas, como compra e venda de imóveis, por exemplo, e não tinham sequer um atestado de óbito. Além disso, ficou estabelecida uma indenização simbólica no valor de R$ 180 mil para cada família. Outra atribuição estabelecida pela lei é que a entidade deve buscar os corpos e promover a identificação. Esse aspecto acabou tendo muita dificuldade, pois a comissão foi criada, mas sem estrutura e sem verba. Em 2014, quando fui convidada para ser presidente, não havia regimento interno, o orçamento e a estrutura eram pequenos. Posteriormente, conseguimos melhorar. Hoje a comissão possui um orçamento suficiente para promover buscas e viagens. Esse orçamento decorre, basicamente, de emendas feitas por parlamentares que são sensíveis à causa.
Hoje a frente mais estruturada trabalha no caso do Cemitério de Perus (zona norte de São Paulo), onde uma vala clandestina foi descoberta (no final dos anos 1980). Houve um pequeno trabalho de identificação no começo, que depois parou. As ossadas ficaram mais de 20 anos sem análise, entre 1990 e 2012. Hoje, são 1.040 caixas que estão sendo analisadas em um laboratório localizado em São Paulo. No Cemitério de Perus pode haver os restos mortais de 40 militantes políticos que desapareceram na época. Esses trabalhos já geraram a identificação de duas pessoa: Dimas Antônio Casemiro e Aloísio Palhano. Pode parecer pouco, mas significa muito, principalmente para as famílias. O caso Palhano é bem parecido com o de Fernando Santa Cruz, pois não havia qualquer documento que mostrasse que ele tinhas sido levado para lá, e a identificação foi feita pelo DNA. Isso mostra que havia a prática, por parte dos agentes do governo, de levar os mortos para valas como essa. Ou seja, existe a possibilidade de o corpo de Fernando Santa Cruz ter sido jogado nesse local.
Ele (Jair Bolsonaro) não tem documento sobre o que falou (o presidente disse que Fernando Santa Cruz teria sido morto por outros integrantes da Ação Popular, grupo do qual fazia parte). Historicamente, não tem qualquer fundamento. Nos anos 1970, a Ação Popular já estava separada da luta armada. Nem isso tem de veracidade. O que fica claro na fala dele é que todos os ex-agentes da ditadura, como Curió (Sebastião Rodrigues de Moura, então major do Exército), Fleury (Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Dops em SP), Ustra (Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel do Exército e chefe do DOI-CODI), tinham em comum a prática de assassinar também a reputação da vítima. Essa versão do presidente não acrescenta, confunde, não diz onde está o corpo, é totalmente caluniosa.
A comissão continua trabalhando, mas nós não sabemos até quando, pois o que dizem é que ele (Bolsonaro) vai baixar um decreto a qualquer momento substituindo todos os membros. Então falo como presidente até hoje, amanhã não sei o que acontece (essa parte da entrevista foi feita na noite da quarta-feira, e, no dia seguinte, saiu a decisão do presidente sobre a mudança nos quadros da comissão). No caso do Araguaia existe uma questão jurídica: as buscas estão a cargo do próprio governo federal, e por isso a comissão não pode entrar, e nós queremos atuar nesse caso. Havia uma frente de trabalho no Rio de Janeiro, que funcionava até o ano passado, mas que este ano ainda não conseguimos implantar por não termos conseguido renovar o convênio. O decreto presidencial que extinguia conselhos acabou com a equipe de identificação que a comissão tinha. Vamos ter que pensar em outra alternativa de agora em diante.
Com relação às vítimas do regime militar, o Brasil é um dos países mais atrasados, começou muito tarde a realizar o trabalho de busca e identificação dos desaparecidos políticos. É o mais atrasado também na Lei de Anistia, que foi usada para perdoar também os torturadores, o que é inconcebível. Chile e Argentina, por exemplo, não aceitaram as leis de anistia que foram elaboradas e processaram os torturadores. Os governos militares se autoperdoaram antes de sair e fizeram as leis, mas depois elas foram consideradas inconstitucionais, houve processos e prisões, incluindo a do (ex-ditador chileno Augusto) Pinochet. No Brasil não tem nada disso. Somos atrasados também na questão dos espaços de memória, existem poucos marcos de memória sobre esse período por aqui.
Essa é uma comissão de Estado, diferente dos órgãos de governo, e não pode ficar à mercê de um perfil ou outro de governante. Quando o presidente foi eleito, entendemos que era cada vez mais importante continuar o trabalho. Mudou o governo em janeiro e ele (Bolsonaro) nunca havia se debruçado sobre essa questão antes, e nem foi falta de nós termos pedido. Nos apresentamos e pedimos para permanecer. Em princípio, foi aceito. Depois, ocorreu isso. Enviaram convite para outro procurador da República, que nem ter perfil de atuação nesse tema. A atitude do presidente é cruel. Ele nega a veracidade de fatos quando deveria fazer cumprir o que as leis preveem. O Estado tem que cumprir as decisões da Comissão Nacional da Verdade. Se ele de algum modo entende que não são corretas, tem que instaurar um procedimento adequado para averiguar. Sabemos que existem documentos para serem liberados, mas eu duvido que eles desmintam o pouco que o Estado brasileiro já assumiu até o momento.
Com essa decisão (a mudança na comissão especial), o trabalho fica mais difícil daqui para frente. Essas famílias sofrem muito. Fiquei quatro anos na presidência e sempre me choquei com o tamanho dos obstáculos que sempre são colocados no caminho. Existe muito segredo em torno desse assunto e nunca se consegue ultrapassar essa barreira. Seria muito simples os governos dizerem onde estão os corpos, o que realmente aconteceu com essas pessoas. Mesmo a Comissão Nacional da Verdade, ela teve que se limitar a aproveitar uma documentação que já existia, acabou trazendo poucas informações novas pois não teve apoio do governo para a liberação de informações consistentes nos arquivos. É muito desgastante e triste para as famílias das vítimas. Na comissão, acabei esgotando em muitas frentes de trabalho as buscas físicas e passamos a prezar pelo acolhimento familiar, medidas de reparação moral, divulgação de relatórios, tudo para saberem que algo estava sendo feito. O governo brasileiro, infelizmente, adotou uma postura de esquecimento sobre esse tema. A comissão especial depende de uma estrutura que o governo deveria dar, mas não o faz.