Mais do que uma mudança no ordenamento jurídico do País, a discussão em torno do projeto de lei 7596/2017, que prevê punição para os casos de abuso de autoridade, ganhou contornos de novo capítulo na polarização política nacional. De um lado, uma parcela de juízes, promotores e policiais que vêem na norma uma tentativa de cerceamento de suas atividades profissionais. Do outro, juristas e políticos que pressionam pelo que consideram um aprimoramento da legislação já existente sobre o tema. No fundo, e evocada pelos dois lados quando o assunto vem à tona, a operação Lava Jato. Para o primeiro grupo, é preciso não atacá-la. Para o segundo, tolher seus eventuais excessos.
Aprovada no último dia 14 na Câmara dos Deputados, em Brasília, a matéria é de autoria do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), e visa revogar a lei 4.898, de 1965, que regulamenta o abuso de autoridade. Pela nova norma, as penas para os servidores variam de três meses a quatro anos de detenção em caso de condutas tipificadas como infrações.
Pela nova lei (o presidente Jair Bolsonaro tem até o dia 5 de setembro para sancionar ou vetar o texto), se um juiz condenar alguém à prisão “em desconformidade com as hipóteses legais”, pode ser denunciado pela parte prejudicada e responder a processo em instância superior. Caso considerado culpado, pode pegar de um a quatro anos de detenção.
Legislar sobre abuso de autoridade está longe de ser, para usar a expressão imortalizada pelo economista Pérsio Arida, uma “jabuticaba”, ou algo peculiar ao Brasil. As mais sólidas democracias do planeta têm leis que punem más condutas de agentes públicos (ver arte ao lado). Nos Estados Unidos, as penas vão de prisão simples até a pena de morte, dependendo da gravidade do dano causado. Na França, prisão de sete a trinta anos e multa de 100 mil a 450 mil euros, também a depender de quão grave foi o ato do agente público.
A alarido em torno da proposta deve-se, basicamente, a duas coisas: o contexto em que foi gestada, em 2017, e o “É nesse contexto que ressuscitam um projeto adormecido e o votam de forma mal-assombrada. Isso tudo faz parte de um grande concerto para evitar novas (operações) Lava Jato e limitar os efeitos da atual”, dispara o jurista pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho. O “mal-assombro” a que ele se refere foi a votação da matéria, no dia 14 de agosto. Tramitando desde 2017 no Congresso, o texto foi votado praticamente às pressas, em um único dia. “A (votação em) urgência foi aprovada numa sessão à tarde e à noite já houve votação de mérito. A matéria estava protocolada na casa há um tempo, mas não havia discussão de que ela seria tratada como prioridade depois da reforma da Previdência”, comenta o deputado federal Daniel Coelho (Cidadania-PE). Em defesa da matéria que está nas mãos de Bolsonaro vêm advogados dos mais diferentes matizes. Para o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE), Bruno Baptista, o projeto que coíbe o abuso de autoridade é necessário e oportuno para o exercício da profissão. “O combate à corrupção – sempre com respeito ao devido processo legal – deve ser uma bandeira de todos os brasileiros e a Lava Jato teve e tem um papel fundamental nisso, mesmo com as suas falhas”, diz, para, em seguida, rechaçar o caráter de guerra política que, atualmente, envolve o tema. “Pena que esse pensamento binário que divide o mundo entre mocinhos e bandidos limite tanto o debate”. “As críticas (ao projeto de lei) vêm sempre daqueles que de forma bastante corriqueira abusam da autoridade que têm”, afirma o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay. Famoso por atuar na defesa de políticos – em um rol que vai de José Dirceu (PT) a Aécio Neves (PSDB) –, ele não tem papas na língua ao falar do que considera excessos e crimes cometidos pelos integrantes da Força-Tarefa da Lava Jato e até mesmo pelo atual ministro da Justiça, Sergio Moro, em sua atuação como juiz. “A lei (de abuso de autoridade) que existe é de 1965, e é defasada ao extremo. A discussão se dá em muito boa hora, pois os vazamentos do (site) The Intercept mostram abusos reiterados praticados pelo (procurador da República) Deltan (Dallagnol) e seu grupo, além de abusos ilegais e criminosos praticados pelo ex-juiz e hoje ministro Sergio Moro. Ele coordenava a Força-Tarefa”, completa.
OPORTUNO