Dia 4 de março de 1964. O primeiro superintendente da Sudene, Celso Furtado, encerra a 46ª Reunião do Conselho Deliberativo sem revelar mau pressentimento: “Convoco os senhores conselheiros para a próxima reunião, dia 3 de abril”. A 47ª só ocorreria, no edifício JK, com sede no Recife, no dia 6 de maio. Preside o governador de Pernambuco, Paulo Guerra – assumira com a deposição de Miguel Arraes pelo golpe militar – e no cargo de Furtado estava um general. O economista, escolhido por Juscelino Kubitschek para idealizar o órgão planejador do desenvolvimento do Nordeste, e que tinha enfrentado a resistência de políticos nordestinos, seguiria depois para o exílio.
O Jornal do Commercio inicia hoje – e publica até a quarta-feira (8) – a série "Dossiê Sudene", um mergulho no acervo documental da autarquia criada por lei (nº 3.692) de 15 de dezembro de 1959, que foi extinta em 2001, em meio a ininterruptas ações e acusações de corrupção e desvio de recursos públicos, e recriada sem o mesmo poder em 2003. Os governos militares que se sucederam na ditadura de 1964 não foram capazes de impedir o preconceito e o boicote do Sul e Sudeste e de ministros à autonomia administrativa, à vinculação à Presidência e aos incentivos fiscais para desenvolver a Região mais pobre do País, nem a malversação de recursos e a corrupção.
As atas das sessões – que estão sendo digitalizadas para preservar a memória da autarquia – traduzem todo o processo histórico armazenado em gravações do plenário com governadores, ministros, presidentes da República e conselheiros. Em 1970, em reunião extraordinária para anunciar medidas de enfrentamento à seca, o general Emílio Garrastazu Médici acusa políticos de desperdiçarem dinheiro com “propaganda e empreguismo fácil” e o governador Nilo Coelho aponta “uma trama contra o Nordeste”.
Em 42 anos – de 1959 a 2001 –, a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) sofreu um processo de degradação moral e esvaziamento contínuos, que a normalidade democrática do País não impediu. Ao contrário, aprofundou. Em 1993, o governador-conselheiro Antônio Carlos Magalhães (PFL), da Bahia, seguido por Ciro Gomes (PSDB), do Ceará, acusa os desvios e alerta: “Ou muda ou morre”.
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A história era para ser outra, conforme queriam o presidente Juscelino Kubitschek – inconformado com o flagelo das secas e da indústria da miséria na Região – e o economista Celso Furtado, defensor do Estado como indutor de desenvolvimento, e os próprios governadores da Região nas romarias ao Rio de Janeiro, então capital federal, segundo narram os documentos da embrionária Sudene, o Conselho de Desenvolvimento do Nordeste (Codeno) em 1959.
Apesar da resistência dos “coronéis” da política, temerosos da perda de seus currais eleitorais, as primeiras atas de reuniões e os jornais da época revelam um entusiasmo e a expectativa de que a autarquia em gestação seria a redenção nordestina.
Ainda sob o suplício da seca de 1958, considerada, à época, a maior do século, o ano de 1959 foi rico no debate sobre uma solução permanente para a convivência com o semiárido e a criação de um autarquia que promovesse o processo de industrialização da Região. Os governadores do Nordeste lançam um manifesto denunciando as desigualdades regionais, o abandono histórico do governo central à Região e pedem um novo pacto federativo. As atas do então Codeno e o noticiário dos jornais revelam a luta de JK e de Celso Furtado para aprovar no Congresso Nacional a lei de criação da Sudene, que enfrentava a resistência de políticos.
Não havia unidade na bancada nordestina, a Sudene era torpedeada e travava-se um embate entre o plano do governo e políticos da Região. Uns defendiam a autonomia política do órgão, outros queriam a sua subordinação. Jornais e jornalistas de influência defendiam, porém, a criação da autarquia.
A FUNDAÇÃO
Oito meses antes da fundação, em 26 de abril de 1959 ocorre a primeira sessão extraordinária do Conselho Deliberativo do Nordeste, o embrião da Sudene, quando é aprovado o regimento interno do órgão. No mesmo dia, na segunda sessão extraordinária, é feita a exposição de uma política de desenvolvimento para o Nordeste, com o foco em três setores: infraestrutura de transporte, suprimento de energia elétrica e uma economia de resistência às secas.
Na primeira sessão ordinária, em 1º de junho, o conselheiro e governador de Pernambuco, Cid Sampaio, alerta para a estiagem prolongada no interior e pede a abertura de frentes de emergência. Já na primeira sessão da 2ª reunião ordinária, em 1º de julho, é anunciado que o presidente Juscelino Kubitschek havia designado o sociólogo Gilberto Freyre como representante do Ministério da Educação e Cultura no Codeno.
O deslocamento de populações do semiárido flagelado para áreas úmidas já era uma ideia na ocasião. Celso informa que avançam as discussões sobre “um plano de emergência integrado ao plano de colonização”. Gilberto Freyre pede a “colaboração de sociólogos para orientação na preparação sociológica-psicológica da população a ser deslocada”.
Aprovada a lei que criava a Sudene, a primeira sessão da 1ª reunião ordinária do Conselho Deliberativo da agora Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste vem a ocorrer em abril de 1960. A partir de então, e até março de 1964, as sessões são mensais e com ordem do dia, propostas de projetos, proposições e resoluções extensas. Em 3 de maio de 1961, na 12ª reunião, depois da grande resistência de políticos conservadores, é afirmado que “a Sudene está reconhecida dentro da administração federal de forma definitiva”.
Na 23ª reunião ordinária, em 4 de abril de 1962, o governador de Minas Gerais – o norte é da área da Sudene –, Magalhães Pinto, discorre sobre a necessidade de valorização do homem, afirmando que “se faz necessária a reforma agrária, reforma bancária e democratização do crédito”. Na reunião de 11 de maio, relatório da secretaria executiva fala das negociações com o governo alemão para financiamentos via programa dos Estados Unidos, Aliança para o Progresso. Sebastião de Araújo Campello critica os benefícios do artigo 34 concedidos às empresas privadas, promovendo riqueza excessiva, sugerindo alteração desse artigo condicionando à concessão a uma contrapartida por parte da empresa em termos de favores sociais
Em 6 de fevereiro de 1963, na 33ª reunião ordinária do Conselho Deliberativo, novos governadores eleitos se apresentam. Sucessor de Cid Sampaio, Miguel Arraes expressa o desejo de “colaborar com a Sudene para a solução dos problemas da Região”. Na 34ª reunião, em 6 de março, é anunciada a assinatura de convênios Sudene/Usaid/Pernambuco para obras de abastecimento d'água no Recife, Cabo, Carpina, Belo Jardim, Goiana, Jaboatão e Bezerros, e que a Usaid (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) assinaria convênio semelhante para São Luís (MA).
Na 35ª reunião, em 10 de abril de 1963, é feita a apresentação de resultados da experiência educacional do método Paulo Freyre de alfabetização de adultos no Rio Grande do Norte. O governador da Bahia, Lomanto Júnior, solicita “tratamento mais justo” da Sudene para com seu Estado. E o novo governador mineiro, Francelino Pereira, pede a ampliação da área da Sudene em Minas Gerais.