Casa Amarela, o bairro que tem vida própria

Série Lá onde eu moro mostra os encantos de Casa Amarela, na Zona Norte do Recife
Manuella Antunes
Publicado em 07/04/2012 às 19:37
Foto: Flora Pimentel/JC Imagem


“Em Casa Amarela só falta praia.” É com essa frase que Edimilson Pereira, 52 anos, apresenta o bairro que adora. Filho de Dona Mira, proprietária de um dos bares mais famosos da Zona Norte, ele ajuda a mãe no estabelecimento. Trajando boina, colar e camisa colorida, Meu Rei – como é conhecido pelos amigos e fregueses – abre as portas do Bar da Mira e da grande Casa Amarela para esta edição da série Lá onde eu moro.

Oferecendo um pseudocafé (caldinho de feijão), Meu Rei começa o passeio apresentando o próprio bar. O nome dos ambientes, intitulados xixi rahouse, salão nobre, CTI e sala do black out, fazem parte de um dialeto falado por uma só pessoa em todo o mundo. Ele mesmo. “Temos ambientes para todo gosto. Tem sala para quem beber demais e passar mal e espaço para quem quer vir aqui com o acompanhante extraoficial”, brinca.

Denominando-se perbaiano, por dividir seu tempo entre os Estados de Pernambuco e da Bahia, Edimilson fala de Casa Amarela emocionado. “Esse bairro pulsa. Tem vida própria. O que se vê por aqui é festa e harmonia. A gente vive uma ascensão social, sabia? Aqui tem esse negócio de violência não. Isso tá em declínio nessas bandas.”

Meu Rei propõe um passeio de carro para refazer rotas comuns da sua rotina. Convite aceito, a primeira parada é a Praça do Buriti. Por lá, mostra porque merece o título de majestade. Amigo de todo mundo, o anfitrião segue acenando para um e para outro. “Eu amo esse lugar. Estudei num escola aqui perto e vivia fugindo da aula para ficar aqui. Veja bem, na Praça do Buriti você encontra todas as tribos. Da pediatria à geriatria”, fala, referindo-se aos grupos de diferentes faixas etárias que lá estão.

 

Os adultos batem com força as pedras do dominó contra a mesa. É batida, buchuda e lá e lô que não acabam mais. Ao lado, adolescentes, ainda com a farda da escola, fofocam e dão risinhos envergonhados para a reportagem. A praça é bem-cuidada, tem cara de interior e ainda conta com a Igreja de Santa Maria bem em frente.

Uma brisa boa bate e torna a visita ainda mais agradável. “Isso tem cheiro de vida, não é? Aqui a alma fica calma, fala.” Não é exagero. “Beleza, Meu Rei?”, grita um amigo que vem chegando. “Tranquilo”, responde. É quando Edimilson comenta: “Tá vendo? Aqui em Casa Amarela ninguém se perde. Não tem essa de cada um é cada qual. É um por todos, sabe?”

A tarde chega ao fim e Edimilson continua conduzindo o passeio. A segunda parada é bem perto, na Avenida Norte, em um novo espaço do bairro, que, apesar de ainda nem ter sido inaugurado, já vive lotado. A novidade dá, literalmente, mais cor à região. Gramado verdinho, balanço, escorrego, pista de cooper, mesinhas, bancos e paredes pintadas anunciam que ali funcionará a Academia da Cidade. “É bom, né? Casa Amarela precisa mesmo de mais espaços como esse”, comenta.

Flora Pimentel/JC Imagem
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HISTÓRIA - No passado, Casa Amarela já foi considerado um dos bairros mais populosos do Recife. Dele faziam parte os hoje bairros do Morro da Conceição, Vasco da Gama, Nova Descoberta, Tamarineira, Macaxeira, Mangabeira, Alto do Mandu e Alto José do Pinho. A reestruturação político-administrativa da cidade, em 1988, desmembrou o bairro original, deixando-o apenas com o território atual, que compõe seu Centro Histórico e comercial. A partir da mudança, o bairro perdeu toda sua área de morros, exceto o Alto Santa Isabel.

Apesar disso, ainda vive, em alguns moradores – como é o caso de Edimilson – a sensação de que é tudo uma coisa só. Isso fica claro na continuidade da visita. Meu Rei convida a reportagem para ir até o Morro da Conceição. Antes, porém, uma parada para espiar, por fora, a antiga fábrica da Macaxeira. Localizado na Avenida Norte, o prédio chama a atenção pela beleza da fachada. Apesar da abandonado, serve de espaço para festas no mês de outubro. “É o pessoal do bairro mesmo que organiza tudo. A gente fala com os seguranças e faz a farra por aqui. O bom é que nem precisa enfeitar pro Halloween. O lugar, por si só, já dá medo”, brinca.

Do assustador para o encantador. O pulo é grande, mas foi exatamente esse o rumo que o passeio tomou. Subindo o morro, o Meu Rei, personagem engraçado e visceral que Edimilson vive para atender bem os clientes do bar, cede espaço. A expressão do homem fica enternecida. Ele esquece o dialeto do pseudocafé e mostra-se como é na intimidade. Ou, pelo menos, na intimidade com a fé.

No alto do Morro da Conceição, na praça, aos pés da santa, Edimilson para, tira a boina, reza. Ligado também ao candomblé, vê em Nossa Senhora da Conceição mais do que a padroeira do Recife. Edimilson enxerga Iemanjá.

“O Morro da Conceição é meu canto favorito. Venho aqui sozinho ou com minha mãe, que é devota. Esse lugar é a alma do bairro.” Enquanto fala sobre sua proximidade com a religião e o bem-estar que sente naquele lugar, Edimilson aponta para o horizonte. Ele quer mostrar o pôr do sol. Um olhar mais atento pode transformar essa experiência em algo emocionante. “Assistir a esse espetáculo da natureza aos pés da imagem de Nossa Senhora da Conceição, só mesmo aqui em Casa Amarela.”

Lá em cima, a brisa – conhecida da Praça do Buriti – também se apresenta. Em frente à igreja, os meninos divertem-se, chutando a bola numa pelada instigante. Pertinho dali, marmanjos falam alto. O assunto? Futebol. “Pode vir aqui qualquer hora. Eles estão sempre falando sobre isso”, ri. Os gritos e risadas só perdem para os latidos dos cachorros. Parece que os cães de Casa Amarela também escolheram o Morro como lugar predileto.

Já era noite quando Edimilson convidou a reportagem para conhecer o clube Acadêmicos do Morro. O mergulho foi do sagrado ao profano. O espaço fica pertinho da igreja. “É o meu lugar nas noites de sexta-feira”, confessa. Shows de funk, pagode e apresentação de DJs rolam sempre por lá. “Sabia que chove de gente da Zona Sul aqui? O Acadêmicos é famoso. É bom demais, viu?”

MERCADO - Quando sai da farra, Meu Rei não tem nem dúvida. A parada certa, nas manhãs de sábado, é o Mercado Público de Casa Amarela. “Desço direto para tomar café lá. Macaxeira com um guizadinho. Quer coisa melhor?” Mas o mercado também é trabalho. Boa parte da feira para o Bar da Mira é feita por lá. “Casa Amarela tem de tudo. É um bairro que se supre, sabe? A gente não precisa sair daqui para comprar nada.” Isso sem falar na feira livre, uma das mais famosas da cidade, que acontece na Rua Padre Lemos aos sábados e atrai gente de todo o Recife.

E é assim, entre a feira, o mercado, a farra e a reza que Edimilson – ou Meu Rei – leva a vida percorrendo Casa Amarela, o Morro da Conceição e a Macaxeira. E nem invente de brincar e chamar o local de Yellow House na frente dele. A careta é inevitável. Meu Rei é bairrista. No melhor estilo. Daqueles que enchem a boca para afirmar que o lugar onde mora não poderia ser melhor. E o mais importante: ele faz qualquer um acreditar.

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