De pai para filho

Conheça algumas histórias de restaurantes que resistiram ao tempo, tornaram-se ícones da boa mesa e figuram como uma preciosa joia de família
Flávia de Gusmão
Publicado em 10/08/2012 às 12:06


QUINA DO FUTURO

Não se pode dizer que o japonês Shigeru “Júlio” Matsumoto queria ver seu filho Saburó entrar para o negócio da família. No início, nem havia razão para preocupação, uma vez que os planos imediatos do caçula eram estudar um ano nos Estados Unidos e, a partir desse intercâmbio na high school, tentar obter uma bolsa para a faculdade lá. Teria dado certo se Saburó não tivesse frequentado uma disciplina chamada culinária doméstica, na qual os alunos aprendiam a cozinhar e servir à mesa.

De volta ao Brasil, em 1994, trouxe na mente a ideia fixa de pertencer aos quadros do Quina do Futuro, restaurante inaugurado pelo pai em 1986, sucessor de outros empreendimentos no ramo de refeições fora do lar. O negócio pioneiro da família Matsumoto (aí incluindo o tio Masayoshi, que hoje comanda o Sushi Yoshi) foi o Tokyo’s, que servia pastel num box instalado na viela espremida entre o edifício Pirapama e as Lojas Americanas, no Centro do Recife, conhecida como Beco da Fome. Na sequência veio uma versão ampliada e aprimorada: o Tokyo’s com self-service acoplado, na Rua da Palma, e, tempos depois, o Le Buffet, na Rua do Hospício, que de dia era restaurante e à noite caraoquê.

O Quina surgiu quando o visionário Seu Júlio farejou a mudança no perfil do consumidor, que culminaria com a explosão da culinária tradicional japonesa entre a população recifense, no ainda distante ano de 1999. Antes disso, porém, Seu Júlio montaria uma espécie de laboratório no Le Buffet: um balcão com seis lugares onde ele começava a apresentar aos pernambucanos a gastronomia nipônica.

Até receber das mãos do pai o comando do Quina do Futuro, casa que hoje projeta o nome de Pernambuco para o Brasil, Saburó teve que ralar. E muito. Passou três meses só lavando pratos, depois um ano como garçom, foi caixa e entregador por seis meses e auxiliar de cozinha quente por mais 120 dias. Quando chegou a hora de lidar com a milenar arte do sushi, foi enviado ao tio Yoshi, que durante alguns meses ensinou-lhe toda a base e respeito necessários para lidar com os ingredientes e os utensílios. “Lembro todos os dias com muita saudade não só do treinamento com meu pai e meu tio, mas dos ensinamentos e valores que um homem deve ter”, revela.

A essas lembranças ele junta outras: os divertidos almoços e jantares em família nos dias de folga. Fotografias impressas no cérebro de corre-corre na cozinha e panelas enormes liberando fumaça; filas de espera. Cozinhar omeletes com sua mãe, Tomiko Matsumoto, de manhã, bem cedo, para entregar no Le Buffet todos os dias. Tomar café da manhã no Mercado de São José, às 5h da matina, com o pai e o irmão Taró, escolhendo os melhores produtos, aprendendo os truques para reconhecer os melhores pescados.

Pelas mãos e olhos do pai, Saburó foi espectador privilegiado da evolução galopante do perfil gastronômico da cidade e dele, hoje, é astro principal. “Quando o Quina começou, havia muito receio em comer peixe cru e tínhamos que oferecer os pratos quentes (teppan-yaki e yakissobas) para ser o cartão de visitas. O chef ou cozinheiro não tinha status nenhum e tínhamos, em alguns casos, ter que driblar situações preconceituosas”, rememora.

E qual a receita da longevidade num segmento em que 80% dos estabelecimentos fecham ao término de um ano? “O restaurante que quer permanecer aberto não pode se confiar apenas na boa comida que produz. Se não houver um grande administrador/financiador por trás, segurando a barra, não aguenta”, enfatiza. Lições que aprendeu pela porta aberta pelo imigrante que fez dele brasileiro e pernambucano.

LEITE

Aos 81 anos, o português Arménio Ferreira Diogo Dias pode se orgulhar. Primeiramente por ter legado ao Recife o seu maior ícone gastronômico, o restaurante Leite, que este ano comemora 130 anos. Em segundo lugar, por ter garantido uma descendência que não apenas dispensa o mesmo respeito e carinho às tradições, como equilibra esta reverência com pitadas precisas de modernização, traduzida em conforto para o cliente.

Há alguma tempo, Mônica Dias, a primogênita, é presença constante nos salões do Leite, sua missão, introduzir inovações de tal forma que não afetem a sensibilidade daqueles que buscam no restaurante uma alma secular, mas que sejam suficientemente efetivas para manter o charme e a funcionalidade deste estabelecimento veterano. “Estou agindo principalmente nos bastidores, introduzindo equipamentos e procedimentos que agilizam a cozinha sem alterar o famoso padrão de qualidade do Leite”, revela.

É realmente uma corda bamba, pois os dois universos devem coexistir sem colidir. Para se ter uma ideia das diversas linhas temporais que representam o Leite, ao mesmo tempo em que os palitos de dente são feitos à mão num convento de Portugal, o sistema de refrigeração do ambiente tem tecnologia desenvolvida pela Nasa com o objetivo de manter o ar sempre purificado. O micro-ondas, usado com muita parcimônia e nunca para esquentar ou preparar pratos, entrou na cozinha praticamente ao mesmo tempo em que os avançados fornos combinados de procedência alemã, capazes de dar o ponto perfeito a filés e legumes em questão de minutos.

Aos poucos, Mônica vai introduzindo métodos mais modernos de gestão e controle, como a confecção de fichas técnicas para todos os pratos. Esta ferramenta permite contabilizar minuciosamente todos os ingredientes utilizados na receita. O objetivo, além de saber exatamente quanto o prato custa ao restaurante, é garantir o mesmo padrão na execução.

A adega climatizada no salão foi outra das intervenções sugeridas por Mônica que, antes disso, implementou uma atualização em regra na carta de vinhos, tornando-a mais coerente e abrangente em preço e variedade de rótulos. Se depender de Mônica, o DNA do Leite vai se perpetuar como as esfinges do Egito.

TIO PEPE

Essa menininha da foto, carinhosamente abraçada pelo avô, chama-se Mirtes Garrido, merecedora do mesmo nome da mãe. Quase profético, o flagrante denuncia que viria a ser ela a herdeira e responsável por manter íntegro e ampliado o “projeto de vida melhor” que seu pai, o espanhol José Garrido Cid, o Pepe (de pé, ao lado da mãe), traçou para a família de quatro filhos.

Sem nunca antes ter se envolvido com culinária, recém-chegado ao Brasil, ele decidiu alugar uma barraquinha na praia, localizada em frente ao antigo Hotel Boa Viagem, e ali inaugurar o restaurante que levava seu apelido, acrescendo-lhe o simpático “tio”, Tio Pepe. Era o dia 1° de junho de 1964. Na cozinha, a esposa e amigas que se revezavam na tarefa de preparar coisas gostosas: bolinho de bacalhau, agulhinha frita, crustáceos (lagostas, lagostins e camarões gigantes) entravam ainda se mexendo na panela. Alguns iriam parar direto numa imensa churrasqueira montada ali mesmo e, depois de grelhados, servidos com manteiga Turvo derretida.

O movimento era tão intenso que, às vezes as “cozinheiras” rogavam para que caísse uma chuvinha para acalmar os ânimos dos comensais famintos. O pessoal das companhias aéreas, Varig e Aerolíneas Argentinas, mal largavam as malas, já corriam pra lá. Foi assim que cresceu Mirtes Garrido, a filha. Vendo tudo acontecer, aprendendo e guardando.

Quando a ressaca tornou impossível a permanência do Tio Pepe com o mar lambendo-lhe os pés, e a barraquinha precisou ser demolida pela prefeitura, ele procurou outros endereços, até se firmar onde está hoje. O encanto não foi quebrado e o Tio Pepe permanece recebendo gerações: “É lindo ver os vovozinhos entrando no Tio Pepe atual com seus netos e bisnetos. Apesar dos 48 anos, nos sentimos adolescentes”, resume Mirtes.


BARBARICO
Basta entrar no Barbarico Bongiovanni, num almoço domingueiro, para confirmar aquilo que diz seu proprietário, Juan Serpa: “Nossos pratos seguem sendo prestigiados pelos antigos fregueses, seus filhos e até pelos netos de seus filhos. Não é raro ver quatro gerações sentadas à mesa do Barbarico”, assegura.

Talvez isso aconteça porque o Barbarico nasceu sob o signo do amor, do casamento e da família. Afinal, em janeiro de 1981 começou a história da paulista Rosanna com o argentino Juan, tendo Roma como cenário. E para continuar no terreno das especulações, talvez o Barbarico tenha nascido também sob o signo da longevidade, carimbado pela Cidade Eterna. “Conheci Rosanna e nos apaixonamos. Moramos juntos, na Itália, até os últimos dias de 1981, porque ela acabou seu curso de pós-graduação em hotelaria e teve que voltar para o Brasil. Alguns meses depois, desembarquei por aqui e a pedi em casamento, o que acabou acontecendo um ano depois”, lembra Juan.

O Barbarico pode ser considerado o primeiro filho do casal, nascido em 1983, quando Juan e Rosanna resolveram se estabelecer no Recife, ao lado da família dela, que aqui estava por motivo de trabalho. “Foi pisar no Recife e nunca mais querer sair daqui”, garante Juan. A solução profissional para ambos surgiu com a oportunidade de inaugurar um restaurante italiano como até então a cidade não conhecia. “Começamos alugando uma fração de uma casa na Avenida Domingos Ferreira, onde abrimos o primeiro Barbarico. O sucesso foi tão grande que, poucos meses depois, pedimos ao nosso senhorio que nos alugasse a casa toda”, relembra.

O começo não foi fácil. Os clientes entravam, olhavam para o cardápio e ficavam desapontados: não tinha filé à parmigiana, nem pizza, nem lasanha e, não bastasse isso, o cardápio ainda estava recheado de nomes estranhos: carpaccio di manzo, capelloni, rotoloni, scaloppine al marsala.
“Mesmo assim, os convencemos a ficar e a confiar nas especialidades do chef. Em 1983, quase não havia casas de massas no Recife e a notícia do ‘ristorante’ e seu chef italiano correu, rapidamente, de boca em boca e alguns meses depois o Barbarico era um boom. Difícil foi explicar, tempos depois, que o chef não era italiano. Muito pior foi confessar que era argentino”, diverte-se Juan.

Com quase 30 anos, o Barbarico mudou-se para sua própria casa, também na Av. Domingos Ferreira, e ninguém parece se importar com a nacionalidade do seu mentor”. E a sucessão? O jovem casal ainda não pensa nisso, deixa o tempo se encarregar de dizer se o filho, Enrico, tomará conta da prova de amor dos pais.

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