A história, brinca o ilustre pernambucano Evaldo Cabral de Mello, é como a casa do senhor: cheia de portas e janelas. Não existe, felizmente, um só modo de enxergar um evento do passado, nem um meio só de contar como foi um período. Os grandes feitos e nomes, a história comum, as contradições das estruturas sociais, os discursos de regiões e pessoas que ficam à margem dos grandes centros, tudo isso é uma forma de acessar essa casa fascinante. Duas historiadoras experientes, a paulista Lilia Moritz Schwarcz e a mineira Heloísa Murgel Starling, tentaram da sua própria forma chegar a esse espaço – indefinido, porque ainda não está terminado –: através de uma biografia do Brasil.
Com quase 700 páginas, Brasil: Uma Biografia (Companhia das Letras) é uma tentativa de retratar o país em suas contradições. Se o Brasil não é para principiantes, como afirmava Tom Jobim, a obra de Lilia e Heloísa é pelo menos uma bela introdução ao personagem – complexo, com problemas e questões bastante singulares. Como uma boa narrativa da vida de alguém, a ideia não é definir como a nação é (e sempre será), mas buscar revelar seu passado com uma nova visão e dar luz também a eventos e pessoas que o Brasil quase apagou da sua trajetória. “O senso comum diz que a história é lembrar, mas, assim como Walter Benjamin, preferimos pensar em história como lembrar e esquecer”, afirma Lilia, em entrevista ao JC. “E é importante ver a história como mudança e repetição. Não como destino, e sim como problemas, armadilhas, questões.”
Para ela, existem três traços – a historiadora paulista ressalta que essas características não são inatas ou parte do DNA do país: foram construídas e mantidas no nosso processo histórico – que descrevem bem a vida até então desse personagem apaixonante, mas recheado de questões não resolvidas. A primeira seria a mestiçagem, que muitas vezes é entendida dentro da falsa ideia de que vivemos em uma democracia racial. “A raça, no sentido social, e não biológico, ainda é um problema para nós. Principalmente com a chegada forçada de povos africanos, mas também com os povos indígenas. É importante entender que a mestiçagem não é um formato de troca igual: ela é cheia de hierarquias. Com o tempo, conseguimos até uma inclusão cultural das outras raças, mas a exclusão social continua grave”, descreve Lilia. É aí que entra, muito além de relatos da corte, a importância da história dos excluídos e anônimos, tão ricos para se entender o que forma o Brasil em suas belezas e crueldades.
Outro aspecto que marca a nossa vida coletiva é a violência. É famoso o mito de que o Brasil é um país pacífico, que participou só uma vez de um conflito, a Guerra do Paraguai, mas Lilia e Heloisa destacam que a nossa história é cheia de conflitos internos e supressões. “O Brasil se escora nessa ilusão de só ter tido uma guerra, mas, na vida do nosso biografado, a violência aconteceu em todos os períodos, até antes do Brasil se tornar Brasil. Revoltas, conflitos e insurreições sempre fizeram parte da nossa linguagem política no período colonial, no Império e na República”, expõe.
Uma das nossas questões mais persistentes, no entanto, é o patrimonialismo, desrespeito dos limites entre o que é público e privado. Segundo Lilia, isso é bem expresso tanto na vida pública – instituições e cargos são pensados para servir a pessoas específicas e não ao bem-estar geral – como quanto na vida íntima desse personagem. “Convivemos com esse inflacionamento da esfera privada ante a esfera pública. É daí que vem essa desconfiança do brasileiro com as instituições. Felizmente, parecemos estar em um momento diferenciado, com a democracia fortalecida”, aponta a historiadora paulista. “As pessoas sempre veem a corrupção como um problema do outro. Chamamos políticos de corruptos como se não tivéssemos responsabilidade nisso. Com a pirataria acontece o mesmo: o contraventor é sempre o outro. Não podemos cair na armadilha de naturalizar a corrupção, ela é uma construção e pode ser combatida.”
Como toda biografia feita com o personagem ainda viva, o livro sabe que nada é estanque na vida e na história: novos olhares mudam fatos e mudanças e tensões acontecem. Brasil: Uma Biografia não se expande muito além da transição para a democracia depois da ditadura militar: os governos de FHC, Lula e Dilma são citados, mas brevemente. Lilia, no entanto, vê com certo otimismo o momento atual. “É bom ver o brasileiro ocupando as ruas para se manifestar, como fez várias vezes na história. Temos só que tomar cuidado para não atacar a nossa democracia e nossas instituições. A democracia é um processo e tem que ser continuamente construída”, comenta.
Para criar essa narrativa não autorizada do Brasil as duas foram atrás dos principais teóricos do país e até de elementos da arte, que ajudam a sintetizar tão bem o fascínio e as contradições da nação – artistas conseguem “dizer de outra forma” o Brasil e seus problemas. Lilia, que já escreveu sobre a artista contemporânea Adriana Varejão e trabalha em uma biografia do escritor Lima Barreto, cita outros nomes importantes para mergulhar um pouco mais nas nossas contradições atuais, como Jonathas de Andrade e Emanuel Araújo, além dos muitos “ruídos da periferia”, como o hip-hop de Mano Brown, a prosa do paulista Ferréz e os saraus da Cooperifa. De Frei Vicente até o rap atual, é esse Brasil de muitas portas e janelas que o livro tenta acessar.