Certa vez, durante um debate na Rádio Jornal de Caruaru, o então governador Eduardo Campos defendia a segurança nas divisas do estado, após uma denúncia sobre a facilidade que havia para circular pelas estradas pernambucanas sem qualquer fiscalização contra a entrada de drogas ou armas.
Campos justificava o trabalho do governo com paixão e ia se mostrando cada vez mais incisivo quanto mais eu, participando da entrevista, insistia na cobrança. Chegou a um ponto em que ele começou a bater a mão fechada sobre a mesa, entre o suave e o firme, parecia estar muito irritado, ia subindo o tom de voz e eu sustentando a questão.
O apresentador chamou o intervalo, achei que o governador iria brigar comigo de tão estressado que parecia estar. Aguardei. Mas ao invés de brigar ele sorriu largo, deu um gole na água que estava ali e fez uma brincadeira comigo sobre eu ser “muito insistente” (da qual eu também ri bastante), para logo depois perguntar se eu gostava de bode.
Sim, desse jeito.
Acabou em bode
Essa entrevista terminou num almoço, comendo um bode assado indiscutível no restaurante de Alex, cuja família era fã de Eduardo e de Miguel Arraes, daquelas que colocam a foto dos dois na parede ao lado da imagem da Sagrada Família.
Sobre a segurança nas estradas? Após a entrevista ele mandou reforçar a fiscalização nas divisas, indiretamente admitindo o problema que eu reclamava. Depois entendi que, ali em público, ele precisava valorizar a PM sob seu comando. Mas tomou as medidas objetivas e pragmáticas administrativamente, cuidando de mostrar seu apoio à tropa sem expor o trabalho dos policiais.
Eduardo Campos era pragmático e sensível, numa proporção rara.
Base
Ele era capaz de agir com objetividade, mesmo num cenário de comoção e tensão extrema, mas também era capaz de se comover e ser sensível com situações em que apenas a objetividade nua e crua já resolveria. Essa capacidade de ação e subjetividade, de pragmatismo e utopia, era parte da receita que lhe conferia tanta popularidade e base dos muitos resultados que entregou ao longo da vida.
Delfim
Lembro de Eduardo Campos enquanto ainda repercute a morte de Delfim Netto, conhecido como o “Czar da Economia” brasileira. Delfim era diferente de Eduardo Campos não apenas por ter sido ligado à direita, mas porque era um pragmático desprendido de qualquer utopia. A objetividade suplantava qualquer sentimentalismo ou idealismo emocional. Acreditava no que podia ser resolvido de forma direta e nada mais.
Por isso, talvez, não tenha sido tão popular, embora precise ter seu valor reconhecido. Delfim morreu dizendo que não se arrependia, por exemplo, de ter sido um dos que assinou o AI-5, endurecendo o regime militar.
Prático
A assinatura se deu no período em que foi ministro da Fazenda por vários anos, em dois governos militares e também durante o período em que o Brasil foi governado por uma junta das Forças Armadas. “Naquele momento, eu voltaria a assinar o AI-5… Naquele instante, foi correto”, justificava ele. Para em seguida dizer que hoje isso não se sustentaria. “Os que defendem um AI-5 hoje são uns idiotas que não sabem o que acontece”.
Mais prático e pragmático, impossível.
Anão
Delfim também tinha outras frases icônicas. Uma das mais famosas é sobre a ineficiência das gestões públicas: “Se o governo comprar um circo, o anão começa a crescer”. E outra, sobre descontrole com os preços: “Ter uma pequena inflação é como ter uma pequena gravidez: ela rapidamente deixa de ser pequena”.
Lula
O que fazem Eduardo Campos e Delfim Netto em um mesmo texto? Tem a ver com Lula.
É, talvez, por ser uma força da natureza pragmática que a improvável aproximação de Delfim com um dos maiores líderes da esquerda mundial e o maior do Brasil, atual presidente da República, chame tanta atenção e surpreenda tanta gente.
Sim, Lula, o petista, maior líder da esquerda, tinha o ex-ministro da ditadura militar como um de seus maiores consultores na economia. Delfim ajudou muito na concepção econômica dos dois primeiros mandatos do PT.
Esquerda infantil
Logo no começo do governo Dilma Rousseff (PT), em 2011, Lula mandou ela procurar Delfim Netto. A presidente eleita obedeceu no início, mas depois não fazia nada do que o consultor orientava. O próprio ex-ministro perdeu a paciência e detonou o governo Dilma em 2012. Escreveu artigos com frases como: “somos vítimas da esquerda infantil” e “as pessoas creem que o estado cria recursos”.
Inútil falar
Quando lhe pediram para explicar o que deu errado no governo Dilma, ele disse: “o limite superior da minha tolerância foi quando ela transformou dívida pública em superávit primário. Aí eu parei porque era inútil falar”.
Como sempre, direto e pragmático.
Encaixe
E por que deu certo com Lula? O petista e o ex-ministro da ditadura se encaixavam porque havia sensibilidade social aliada à objetividade crua. Brincando, dá pra dizer que a junção dos dois dava um Eduardo Campos.
Lula é um animal político, mas vive cercado de utopia e interesses ideológicos por todos os lados. A parte positiva é a sensibilidade com as camadas mais pobres da população. Quando foi que os governos petistas deram certo na economia sem esquecer o social? Foi quando os membros da equipe econômica recebiam conselhos do pragmático, curto e grosso, Delfim Netto.
Não era por acaso.
Esperança
Enquanto não surge um novo Eduardo, alguém mais completo, resta torcer que apareça um novo Delfim para tentar salvar o que restou de Lula. O presidente precisa de um consultor ao menos parecido com o que nos deixou agora. Não precisa ser da direita, não precisa ter trabalhado em governo militar, mas precisa ser objetivo e pragmático, realista com o país. Haverá outro?