"TARIFA ZERO NÃO É UMA POSSIBILIDADE UTÓPICA"
Por Marcos de Sousa
Os recentes aumentos nas tarifas de transporte urbano no Brasil e as manifestações realizadas pelo Movimento Passe Livre trazem novamente às manchetes a polêmica sobre a necessidade de aumentar subsídios e de mudar a forma como são contratados e geridos os serviços de ônibus nas cidades brasileiras. Para esclarecer o tema, voltamos a falar com o economista Lúcio Gregori, um dos maiores defensores da gratuidade do transporte público.
Por que tarifa zero?
A questão tem a ver com o baixo subsídio dado ao transporte urbano no Brasil. No mundo inteiro, em países como os Estados Unidos, França e China, o transporte coletivo é fortemente subsidiado - entre 50% a 70% - pelo estado por meio de taxas. E isso é assim há várias décadas. No Brasil a média gira em torno de 15% e em São Paulo, o subsídio está perto de 20%, um dos mais altos do país.
O transporte coletivo não é um serviço que possa ser encarado como um negócio regido apenas pelo lucro, pelas leis de mercado. Para se ter um sistema de transporte de boa qualidade, no caso de ônibus com tração elétrica, ar-condicionado, câmbio automático etc., o custo de operação vai ser alto e ficará inacessível a boa parte da população. Caso se queira financiar esse transporte de excelência apenas com a tarifa dos passageiros, certamente haverá um colapso. Daí a necessidade de subsídio.
Mas qual seria o nível de subsídio adequado para o Brasil?
Em Xangai, por exemplo, o subsídio é de 60%. Se a cidade de São Paulo adotasse essa cifra, os passageiros pagariam uma tarifa de R$ 1,40, que parece bem mais justa para a renda média da população.
Então, a tarifa zero é uma proposta utópica, apenas para orientar a luta para aumentar o subsídio ao transporte público?
Não. Tarifa Zero é uma proposta para valer, não é utópica. Acontece que se você chega a um subsídio muito alto, com a consequente tarifa mais baixa, o custo da cobrança, os controles necessários, acabam sendo antieconômicos. Nesses casos, a isenção da tarifa surge quase como uma necessidade do gestor público. E com a tarifa mais baixa, as pessoas passam a circular mais pela cidade e dinamizam a economia local.
Lembro que no início de 2013, ainda antes das manifestações de junho, a cidade de Santa Bárbara D' Oeste - SP criou uma gratuidade dos transportes públicos aos sábados. Em outubro de 2014, como a Câmara não votou os recursos necessários, esse benefício foi suspenso. E sabe quem mais reclamou? Foi a Associação Comercial da cidade, que viu o movimento do comércio cair fortemente. Então, a tarifa zero tem um efeito virtuoso não apenas no acesso ao transporte, mas também na economia local. E as cidades ganham competitividade, porque mais gente passa a adotar o transporte público, com redução dos problemas de trânsito provocados pelo excesso de automóveis.
Essa polêmica sobre a tarifa zero me lembra a discussão sobre a criação do 13º salário (em 1962, no governo João Goulart), que no início era considerado "uma ideia de comunistas". Hoje ninguém discute que esse recurso é importantíssimo para movimentar a economia do país.
Mas como obter os recursos para financiar subsídios mais altos ao transporte urbano?
Há várias equações possíveis para fechar a conta. Em Paris, por exemplo, cerca de 40% da tarifa são pagos pelas empresas, numa taxação proporcional ao número de funcionários; outros 35% são pagos pelos usuários e o testante é bancado pelo poder público.Se o estado tiver que bancar todo o subsídio, então alguém terá de pagar isso na forma de impostos, o que leva à discussão sobre as políticas tributárias. O problema é que no Brasil a minoria mais rica paga menos impostos do que a maioria mais pobre.
Falta transparência nas planilhas de custos das empresas que prestam os serviços de transporte urbano no Brasil?
As planilhas, tal como apresentadas, não representam muita coisa. Elas trazem o óbvio e, salvo erros grosseiros, ninguém vai conseguir encontrar qualquer inconsistência.
Um dos problemas é que os insumos são lançados nas planilhas com preços de mercado, mas sabe-se que boa parte das empresas do setor conseguem negociar os preços, porque compram em grandes quantidades. Ou, em muitos casos, os mesmos grupos empresariais possuem empresas que vendem ônibus ou combustíveis, ou sejam compram deles mesmos. Além disso, as planilhas estão desatualizadas; elas foram geradas a partir de critérios do Geipot (Grupo Executivo de Integração da Política de Transportes, organismo criado em 1965), há mais de 25 anos, que já não correspondem à realidade do momento.
A forma mais transparente de elaborar uma planilha de custos seria a criação de um conselho de tarifas, com representação de vários setores da sociedade, incluindo o empresariado, sindicatos de trabalhadores, associações e organizações de usuários, além da prefeitura e das empresas de transportes.
Por que o movimento Tarifa Zero questiona a forma como as empresas exploram o transporte urbano no Brasil?
O problema central é a forma de concessão, é o modelo de contratação adotado pelas prefeituras. Em São Paulo, a forma de remuneração é sobre o número de passageiros transportados, o que é um absurdo. Esse é um estímulo para que o empresário coloque o maior número de passageiros no menor número possível de ônibus. Antes, até 2003, o contrato era por fretamento da frota, com um certo número de passageiros e uma quilometragem prevista por dia.
A forma mais correta seria contratar o serviço a ser prestado: a prefeitura deveria fretar um conjunto de veículos, em boas condições, bem limpos, com todas suas funções em ordem, com os motoristas. Caberia às empresas fornecer essa infraestrutura e ao município a operação e administração das linhas. Enfim, seria um contrato por custo operacional mais custos de capital.
Leia mais sobre a proposta da Tarifa Zero no site
tarifazero.org
"TARIFA ZERO É IMPOSSÍVEL"
Por Yuriê César
Otávio Cunha é presidente da NTU (Associação Nacional de Transportes Públicos). Nesta entrevista ele explica como funciona a operação dos sistemas de ônibus nas cidades brasileiras e apresenta as justificativas para os recentes reajustes das tarifas. Como alternativa, Cunha sugere o aumento do subsídio governamental ao transporte público
O que justifica os recentes aumentos de tarifas?
Os contratos firmados entre empresas e prefeituras prevêem reajustes anuais nos preços da tarifa, pela aplicação de uma fórmula paramétrica que leva em conta a variação dos custos diretos do setor (diesel, pneus, salários, encargos sociais e outros). A cada quatro anos, é prevista uma revisão na planilha de custos; nesta revisão, é possível que a tarifa seja reajustada para mais ou para menos, a depender do aumento ou da diminuição da quantidade de usuários. O novo aumento do diesel, já anunciado pelo governo, pode impactar no aumento de 5,17% no custo da operação e 1,33% na tarifa. Em todos os casos, no entanto, o governo pode subsidiar a tarifa, não repassando os aumentos de custo para os usuários.
Há algum programa de melhoria na qualidade do sistema de ônibus para justificar os aumentos?
A qualidade dos ônibus está diretamente ligada ao valor da tarifa, pois no modelo brasileiro, sem subvenção, todo o custo do sistema é dividido pelo número de passageiros. Na maioria das cidades, até as gratuidades são pagas pelos demais passageiros que pagam a tarifa. Assim, ônibus com ar-condicionado e motor traseiro vão resultar em tarifas mais elevadas.
Especialistas em transportes dizem que as planilhas das empresas de ônibus são "caixas-pretas", e que há manipulação de dados para justificar os aumentos. Como o cidadão que usa o sistema pode avaliar a veracidade e consistência desses dados?
Os dados são sempre repassados pelas empresas às prefeituras. É dever do poder público divulgá-los. Por força de contrato as empresas não podem divulgar os dados para a população.
A auditoria realizada no sistema de transporte de São Paulo constatou, entre outros problemas, que uma em cada dez viagens não são realizadas pelas empresas, o que resulta em ônibus mais cheios e mais tempo de espera nos pontos de ônibus. Como se explica isso?
As empresas devem cumprir os contratos com o governo. Caso eles não sejam cumpridos, como nesse problema da não realização de viagens determinadas, o que posso dizer é que cabe ao governo aplicar as punições estabelecidas.
Qual a avaliação da NTU sobre as manifestações contra o aumento da tarifa?
As manifestações populares de 2013 foram benéficas, pois colocaram o tema do transporte público e da necessidade de subsidiar as tarifas na ordem do dia das autoridades, porém o governo federal ainda não deu respostas que o usuário possa perceber, não foram tomadas medidas de curto prazo. Mas há grandes projetos sendo realizados pelo governo federal, que serão percebidos mais para a frente.
A NTU propôs que a União financiasse a construção de faixas seletivas para os ônibus, com câmeras para fiscalizar os automóveis que invadem as faixas e outras medidas de curto prazo que teriam impacto mais imediato, como a municipalização da Cide (contribuições incidentes sobre produtos importados comercializados) para que os municípios possam investir no transporte público e até subsidiar o serviço.
A proposta apresentada sugeria a construção de 4 mil km de faixas seletivas nas cidades com mais de 500 mil habitantes, o que poderia ser realizado em um ano e teria impacto direto na redução do tempo de percurso, principal reclamação dos usuários. Mas estas propostas não foram aceitas.
A tarifa zero é possível?
É utopia, nenhuma cidade do mundo tem tarifa zero. Nas melhores cidades do mundo existem subvenções de 70%, mas tarifa zero não. Ainda assim, apoiamos o Movimento Passe Livre na lógica de alterar a política tarifária com subvenção. Se a tarifa fosse 50% subsidiada seria possível melhorar a qualidade do transporte público com um preço menor para o usuário.