Retrospectiva 2020: O estrago da pandemia para a mobilidade urbana

Um ano destruidor para a mobilidade mundial. Aprendemos pouco. O Brasil, principalmente. Que 2020 se vá. E logo
Roberta Soares
Publicado em 27/12/2020 às 13:57
A crise sanitária estimulou ainda mais o individualismo, o que, em mobilidade urbana significa dizer: aversão aos transportes coletivos Foto: ARTES JC


Um ano destruidor para a mobilidade urbana. Mundialmente. A pandemia da covid-19 que marcou 2020 criou um hiato difícil de ser vencido na busca de uma mobilidade mais justa para todos, mais socializante para as cidades. A crise sanitária estimulou ainda mais o individualismo, o que, em mobilidade urbana significa dizer: aversão aos transportes coletivos. E como as nossas cidades já não contam com a infraestrutura necessária para estimular a mobilidade ativa e valorizar o transporte coletivo, a impressão é que retrocedemos anos nesse 2020 que chega ao fim.

BRENDA ALCANTARA/JC IMAGEM - A pandemia da covid-19 que marcou 2020 criou um hiato difícil de ser vencido na busca de uma mobilidade mais justa para todos, mais socializante para as cidades

Não era para ser assim. No início do ano, em março, quando a pandemia começou, a ideia de uma uma mobilidade urbana sustentável ganhou força e planos foram feitos. Mas no Brasil, nada, absolutamente nada, chegou a ser implementado. Talvez, mais na frente, possamos comemorar a ampliação da eletrificação do transporte público do País - estratégia que tem avançado no mundo e também no Brasil. Mas não teremos muito mais a comemorar. Nem Pernambuco nem o Brasil. Ao contrário. O transporte sobre trilhos e por ônibus amargaram uma queda de demanda que chegou a 90% em algumas cidades e que ainda se mantém baixo - entre 30% e 40% de redução. E a expectativa é de que essa redução se mantenha por muito tempo.

A mobilidade ativa tentou de todas as formas ganhar vez e voz. Mas foi ignorada mais uma vez. Em todo o Brasil. Países como Alemanha, França, Colômbia e México, por exemplo, incorporaram a lógica da pandemia de que precisamos de cidades com menos poluição atmosférica, por isso, é necessário estimular modais sem motor, o transporte coletivo e o uso de fontes de energia mais limpas. Mas o Brasil perdeu a oportunidade. E o Recife também. Embora a malha cicloviária da cidade tenha crescido em percentuais altíssimos (mais de 400% em oito anos), as rotas criadas não atendem à grande maioria dos ciclistas que usam a bicicleta como transporte. Os grandes corredores e ligações viárias da cidade nunca foram enfrentados.

ARTES JC - A nova mobilidade urbana

BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM - Greve dos Rodoviários. R. Do Sol, Guararapes e Conde da Boa Vista

 

Thiago Lucas/ Artes JC - A volta ao "normal" do trânsito

Os números do trânsito já mostram que o tempo passou e, o que já era difícil, será ainda mais agora. A procura pela primeira habilitação em Pernambuco, por exemplo, já voltou aos patamares da pré-pandemia. O emplacamento de veículos também está crescendo. O estrago não é maior por causa da crise financeira e do desemprego. Ainda no caso de Pernambuco, com um transporte público que opera até agora - nove meses depois do início da crise sanitária - com 70% da frota e superlotação diária e permanente nos horários de pico do dia, é difícil acreditar que a população, podendo, não irá escolher o automóvel ou os apps de transporte individual para se locomover. Não irão para o ônibus ou o metrô. Nem para a bicicleta, muito menos escolherão o caminhar. Sem a orientação e abertura dos caminhos pelo poder público, é difícil reverter a situação agora. Que 2020 passe, e logo.

O LADO POSITIVO DA PANDEMIA PARA A MOBILIDADE
O fato de boa parte do mundo e o Brasil, principalmente, não terem conseguido tirar proveito da pandemia do coronavírus para a mobilidade urbana, não significa que não tenha havido benefícios. Pelo contrário, eles foram muitos. O triste é que não os transformamos em lição de casa, mas foram sentidos por todos: sociedade, cidades e meio ambiente. Entre os aspectos positivos que devem ser lembrados está a redução da violência no trânsito.

BRENDA ALCANTARA/JC IMAGEM - Por sorte, há avanços a serem destacados no País. Levantamento do Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV) apontou que o Brasil conseguiu reduzir em 50% o número de óbitos no trânsito projetados há dez anos

O isolamento da população - respeitado por uma grande parcela da sociedade nos primeiros meses da pandemia - reduziu os índices de eventos de trânsito nas ruas, avenidas e estradas. Com reflexos diretos nas unidades de saúde, que passaram a se dedicar mais aos pacientes da covid-19. A consequência de menos gente circulando nas ruas foi menos trânsito, menos colisões, menos atropelamentos e menos vítimas. Em Pernambuco, por exemplo, houve hospitais referência no atendimento a politraumatizados que tiveram redução próxima a 40%. Um alívio e uma esperança para uma saúde pública pobre e que sempre teve 60% de toda sua estrutura dedicada aos traumatizados do trânsito, que provoca ferimentos e mortes evitáveis.

Kleber Monteiro - Hospital Dom Helder redução de vítimas acidentes durante a Covid-19

Kleber Monteiro/Artes - Samu e Hospital Getúlio Vargas - Covid-19

Kleber Monteiro/Artes - Trânsito no Recife - Covid-19

No Recife, por exemplo, alguns corredores importantes da cidade, como a Avenida Domingos Ferreira, eixo de entrada da Zona Sul da capital, a diminuição do tráfego chegou a 73% nos dias de isolamento social. As ocorrências de trânsito, segundo a Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano do Recife (CTTU), reduziram em mais de 90% entre 21 e 31 de março. Para quem não sabe, as colisões e atropelamentos custam muito caro à saúde no Brasil, principalmente a pública. Só com feridos, o custo alcançou R$ 3 bilhões entre 2009 e 2018.

 

FILIPE JORDÃO/JC IMAGEM - TRANSPORTE Empresa poderá colocar motorista em dupla função

A LUTA PELO FIM DA DUPLA FUNÇÃO
O ano de 2020 na Região Metropolitana do Recife foi marcado pela luta dos rodoviários contra a dupla função de motoristas de ônibus, quando o profissional recebe dinheiro e passa troco além de dirigir. Uma consequência da retirada dos cobradores, que começou em 2015 com a ampliação do uso da bilhetagem eletrônica no sistema de transporte público. Processo polêmico desde o começo, ao ponto de ser interrompido pessoalmente pelo governador de Pernambuco, Paulo Câmara, ganhou amplitude durante a pandemia - autorizada pelo mesmo governador. Quase 2,5 mil motoristas passaram a atuar na dupla função depois de julho, o que tem gerado revolta e protestos da categoria. Foram pelo menos 15 paralisações durante o ano, uma greve revertida e uma realizada, que deixou a população da RMR com menos de 25% dos ônibus por dois dias. Tudo isso em plena pandemia do coronavírus.

 

ARTES JC - Cobradores e dupla função

ANDRÉA RÊGO BARROS/PCR - Iluminação focada no pedestre é fundamental para o bom caminhar. E, nesse aspecto, o Recife tem evoluído. Tem substituído a iluminação voltada para o automóvel por equipamentos focados nas calçadas, onde estão circulando os pedestres

UMA NOVA CONDE DA BOA VISTA 
Uma das melhores notícias deste nada saudoso 2020. A Avenida Conde da Boa Vista foi novamente requalificada e, devido à pandemia, os trabalhos foram antecipados, dando uma nova face ao principal corredor urbano do Centro do Recife. Por onde todos passam e quase todos querem ir. A requalificação - embora tenha recebido críticas por não ter espaço para a bicicleta e não ter ao menos reduzido a superposição de linhas de ônibus - devolveu dignidade ao corredor. Às pessoas que utilizam a avenida a pé e no transporte público - segundo a PCR, 310 mil pessoas circulando diariamente nos 1,6 quilômetro de extensão da via. Entre as novidades, novas paradas de ônibus e estações do Sistema BRT, ordenamento do comércio informal, ampliação de calçadas e travessias de pedestres, arborização e uma ampla iluminação da via.

FILIPE JORDÃO/JC IMAGEM - A Nova Conde da Boa Vista foi entregue com quatro meses de antecedência

ENFIM, A FAIXA AZUL DA AGAMENON MAGALHÃES
Foram quase três anos de espera depois de prometida, pela primeira vez, pela gestão Geraldo Julio na Prefeitura do Recife. Demorou, mas a Faixa Azul da Avenida Agamenon Magalhães saiu em plena pandemia do coronavírus. A crise encorajou a gestão municipal, que por dois anos alegava ter que solucionar gargalos para o automóvel que impediam a implantação da prioridade viária para o ônibus na via. Mesmo ela tendo 12 faixas para os carros e nenhuma para o transporte coletivo ou a bicicleta, por exemplo. Mas a Faixa Azul da Agamenon virou realidade. Os ganhos ainda estão camuflados pela pandemia - 40% na velocidade comercial dos coletivos -, mas a faixa prioritária é simbólica para a cidade.

DIVULGAÇÃO/PCR - Foram pelo menos dois anos esperando pela Faixa Azul da Agamenon Magalhães, antecipada graças à pandemia

A Avenida Agamenon Magalhães é uma via que representa o pulmão viário do Recife, símbolo e um importante eixo do transporte público rodoviário da capital, por onde circulam 69 linhas de ônibus, mais de 600 coletivos e 250 mil passageiros diariamente. A estrutura tem quatro quilômetros de extensão entre os bairros de Santo Amaro e Paissandu.

FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM - Corredor de BRT Norte-Sul

BYE BYE BRT PERNAMBUCANO
O ano de 2020 foi o ano da decadência do BRT pernambucano. Foi o ano da confirmação da sua morte, anunciada ainda em 2019, quando as estações do sistema perderam a vigilância paga pelo Estado e foram verdadeiramente “canibalizadas” - tiveram as partes roubadas enquanto ainda estavam vivas, em pleno funcionamento. Com a pandemia, a vandalização foi ampliada e todas as estações do Corredor Norte-Sul, que liga o Recife a Igarassu, na área norte da RMR, foram roubadas e depredadas. As do Corredor Leste-Oeste, entre Recife e Camaragibe, na área oeste da RMR, também não foram poupadas, embora o dano tenha sido em menor quantidade. Um custo, mínimo, de R$ 6 milhões aos cofres públicos. 2020 foi o ano que decretou o fim do sonho do BRT. Sonho alimentado desde 2009 pelo então governador Eduardo Campos. Era a promessa da qualificação do transporte público, que não se confirmou.

FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM - Os equipamentos foram praticamente destruídos internamente entre junho e julho, apesar de estarem sob proteção da Polícia Militar de Pernambuco, via convênio firmado com a Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado (Seduh)


CONFIRA O ESPECIAL MULTIMÍDIA BRT - E AGORA?

DAY SANTOS/JC IMAGEM - Metrô do Recife seguiu sofrendo em 2020. Além do pouco orçamento, vivenciou um acidente sério, grave, que deixou 60 feridos e centenas de abismados

METRÔ DO RECIFE SOFRE
Como se não bastasse as quebras constantes e o corte de orçamento histórico, o Metrô do Recife sofreu um duro golpe em 2020. Algo nunca visto antes na história do sistema metropolitano, com 35 anos. A colisão entre dois trens que, em fevereiro, deixou 60 feridos e centenas de passageiros, técnicos e gestores perplexos. Houve falha humana - as perícias e investigações confirmaram isso -, mas a colisão foi uma ferida maior. Revelou que a ausência de investimentos financeiros no Metrô do Recife pelo governo federal ultrapassou o limite da segurança viária e tecnológica necessárias a qualquer sistema metroferroviário. Sistemas, vale ressaltar, totalmente controlados por tecnologia.
A investigação constatou que houve uma falha no sistema de sinalização do metrô, algo que já vinha sendo alertado por maquinistas. Para quem não sabe, o sistema de sinalização é a alma da operação metroferroviária. É o controle eletrônico do sistema. É o que garante a segurança da operação, informando ao Centro de Controle Operacional (CCO) a posição de cada composição, permitindo a harmonização entre elas para garantir intervalos mais curtos entre as viagens e evitar exatamente colisões como a que aconteceu. Mas são sistemas que precisam de modernização, o que não é o caso do implantado no Metrô do Recife.

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Thiago Lucas/ Artes JC - Passageiros Transportados Em Agosto/2020
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