Um ano destruidor para a mobilidade urbana. Mundialmente. A pandemia da covid-19 que marcou 2020 criou um hiato difícil de ser vencido na busca de uma mobilidade mais justa para todos, mais socializante para as cidades. A crise sanitária estimulou ainda mais o individualismo, o que, em mobilidade urbana significa dizer: aversão aos transportes coletivos. E como as nossas cidades já não contam com a infraestrutura necessária para estimular a mobilidade ativa e valorizar o transporte coletivo, a impressão é que retrocedemos anos nesse 2020 que chega ao fim.
Não era para ser assim. No início do ano, em março, quando a pandemia começou, a ideia de uma uma mobilidade urbana sustentável ganhou força e planos foram feitos. Mas no Brasil, nada, absolutamente nada, chegou a ser implementado. Talvez, mais na frente, possamos comemorar a ampliação da eletrificação do transporte público do País - estratégia que tem avançado no mundo e também no Brasil. Mas não teremos muito mais a comemorar. Nem Pernambuco nem o Brasil. Ao contrário. O transporte sobre trilhos e por ônibus amargaram uma queda de demanda que chegou a 90% em algumas cidades e que ainda se mantém baixo - entre 30% e 40% de redução. E a expectativa é de que essa redução se mantenha por muito tempo.
A mobilidade ativa tentou de todas as formas ganhar vez e voz. Mas foi ignorada mais uma vez. Em todo o Brasil. Países como Alemanha, França, Colômbia e México, por exemplo, incorporaram a lógica da pandemia de que precisamos de cidades com menos poluição atmosférica, por isso, é necessário estimular modais sem motor, o transporte coletivo e o uso de fontes de energia mais limpas. Mas o Brasil perdeu a oportunidade. E o Recife também. Embora a malha cicloviária da cidade tenha crescido em percentuais altíssimos (mais de 400% em oito anos), as rotas criadas não atendem à grande maioria dos ciclistas que usam a bicicleta como transporte. Os grandes corredores e ligações viárias da cidade nunca foram enfrentados.
Os números do trânsito já mostram que o tempo passou e, o que já era difícil, será ainda mais agora. A procura pela primeira habilitação em Pernambuco, por exemplo, já voltou aos patamares da pré-pandemia. O emplacamento de veículos também está crescendo. O estrago não é maior por causa da crise financeira e do desemprego. Ainda no caso de Pernambuco, com um transporte público que opera até agora - nove meses depois do início da crise sanitária - com 70% da frota e superlotação diária e permanente nos horários de pico do dia, é difícil acreditar que a população, podendo, não irá escolher o automóvel ou os apps de transporte individual para se locomover. Não irão para o ônibus ou o metrô. Nem para a bicicleta, muito menos escolherão o caminhar. Sem a orientação e abertura dos caminhos pelo poder público, é difícil reverter a situação agora. Que 2020 passe, e logo.
O LADO POSITIVO DA PANDEMIA PARA A MOBILIDADE
O fato de boa parte do mundo e o Brasil, principalmente, não terem conseguido tirar proveito da pandemia do coronavírus para a mobilidade urbana, não significa que não tenha havido benefícios. Pelo contrário, eles foram muitos. O triste é que não os transformamos em lição de casa, mas foram sentidos por todos: sociedade, cidades e meio ambiente. Entre os aspectos positivos que devem ser lembrados está a redução da violência no trânsito.
O isolamento da população - respeitado por uma grande parcela da sociedade nos primeiros meses da pandemia - reduziu os índices de eventos de trânsito nas ruas, avenidas e estradas. Com reflexos diretos nas unidades de saúde, que passaram a se dedicar mais aos pacientes da covid-19. A consequência de menos gente circulando nas ruas foi menos trânsito, menos colisões, menos atropelamentos e menos vítimas. Em Pernambuco, por exemplo, houve hospitais referência no atendimento a politraumatizados que tiveram redução próxima a 40%. Um alívio e uma esperança para uma saúde pública pobre e que sempre teve 60% de toda sua estrutura dedicada aos traumatizados do trânsito, que provoca ferimentos e mortes evitáveis.
No Recife, por exemplo, alguns corredores importantes da cidade, como a Avenida Domingos Ferreira, eixo de entrada da Zona Sul da capital, a diminuição do tráfego chegou a 73% nos dias de isolamento social. As ocorrências de trânsito, segundo a Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano do Recife (CTTU), reduziram em mais de 90% entre 21 e 31 de março. Para quem não sabe, as colisões e atropelamentos custam muito caro à saúde no Brasil, principalmente a pública. Só com feridos, o custo alcançou R$ 3 bilhões entre 2009 e 2018.
A LUTA PELO FIM DA DUPLA FUNÇÃO
O ano de 2020 na Região Metropolitana do Recife foi marcado pela luta dos rodoviários contra a dupla função de motoristas de ônibus, quando o profissional recebe dinheiro e passa troco além de dirigir. Uma consequência da retirada dos cobradores, que começou em 2015 com a ampliação do uso da bilhetagem eletrônica no sistema de transporte público. Processo polêmico desde o começo, ao ponto de ser interrompido pessoalmente pelo governador de Pernambuco, Paulo Câmara, ganhou amplitude durante a pandemia - autorizada pelo mesmo governador. Quase 2,5 mil motoristas passaram a atuar na dupla função depois de julho, o que tem gerado revolta e protestos da categoria. Foram pelo menos 15 paralisações durante o ano, uma greve revertida e uma realizada, que deixou a população da RMR com menos de 25% dos ônibus por dois dias. Tudo isso em plena pandemia do coronavírus.
UMA NOVA CONDE DA BOA VISTA
Uma das melhores notícias deste nada saudoso 2020. A Avenida Conde da Boa Vista foi novamente requalificada e, devido à pandemia, os trabalhos foram antecipados, dando uma nova face ao principal corredor urbano do Centro do Recife. Por onde todos passam e quase todos querem ir. A requalificação - embora tenha recebido críticas por não ter espaço para a bicicleta e não ter ao menos reduzido a superposição de linhas de ônibus - devolveu dignidade ao corredor. Às pessoas que utilizam a avenida a pé e no transporte público - segundo a PCR, 310 mil pessoas circulando diariamente nos 1,6 quilômetro de extensão da via. Entre as novidades, novas paradas de ônibus e estações do Sistema BRT, ordenamento do comércio informal, ampliação de calçadas e travessias de pedestres, arborização e uma ampla iluminação da via.
ENFIM, A FAIXA AZUL DA AGAMENON MAGALHÃES
Foram quase três anos de espera depois de prometida, pela primeira vez, pela gestão Geraldo Julio na Prefeitura do Recife. Demorou, mas a Faixa Azul da Avenida Agamenon Magalhães saiu em plena pandemia do coronavírus. A crise encorajou a gestão municipal, que por dois anos alegava ter que solucionar gargalos para o automóvel que impediam a implantação da prioridade viária para o ônibus na via. Mesmo ela tendo 12 faixas para os carros e nenhuma para o transporte coletivo ou a bicicleta, por exemplo. Mas a Faixa Azul da Agamenon virou realidade. Os ganhos ainda estão camuflados pela pandemia - 40% na velocidade comercial dos coletivos -, mas a faixa prioritária é simbólica para a cidade.
A Avenida Agamenon Magalhães é uma via que representa o pulmão viário do Recife, símbolo e um importante eixo do transporte público rodoviário da capital, por onde circulam 69 linhas de ônibus, mais de 600 coletivos e 250 mil passageiros diariamente. A estrutura tem quatro quilômetros de extensão entre os bairros de Santo Amaro e Paissandu.
BYE BYE BRT PERNAMBUCANO
O ano de 2020 foi o ano da decadência do BRT pernambucano. Foi o ano da confirmação da sua morte, anunciada ainda em 2019, quando as estações do sistema perderam a vigilância paga pelo Estado e foram verdadeiramente “canibalizadas” - tiveram as partes roubadas enquanto ainda estavam vivas, em pleno funcionamento. Com a pandemia, a vandalização foi ampliada e todas as estações do Corredor Norte-Sul, que liga o Recife a Igarassu, na área norte da RMR, foram roubadas e depredadas. As do Corredor Leste-Oeste, entre Recife e Camaragibe, na área oeste da RMR, também não foram poupadas, embora o dano tenha sido em menor quantidade. Um custo, mínimo, de R$ 6 milhões aos cofres públicos. 2020 foi o ano que decretou o fim do sonho do BRT. Sonho alimentado desde 2009 pelo então governador Eduardo Campos. Era a promessa da qualificação do transporte público, que não se confirmou.
METRÔ DO RECIFE SOFRE
Como se não bastasse as quebras constantes e o corte de orçamento histórico, o Metrô do Recife sofreu um duro golpe em 2020. Algo nunca visto antes na história do sistema metropolitano, com 35 anos. A colisão entre dois trens que, em fevereiro, deixou 60 feridos e centenas de passageiros, técnicos e gestores perplexos. Houve falha humana - as perícias e investigações confirmaram isso -, mas a colisão foi uma ferida maior. Revelou que a ausência de investimentos financeiros no Metrô do Recife pelo governo federal ultrapassou o limite da segurança viária e tecnológica necessárias a qualquer sistema metroferroviário. Sistemas, vale ressaltar, totalmente controlados por tecnologia.
A investigação constatou que houve uma falha no sistema de sinalização do metrô, algo que já vinha sendo alertado por maquinistas. Para quem não sabe, o sistema de sinalização é a alma da operação metroferroviária. É o controle eletrônico do sistema. É o que garante a segurança da operação, informando ao Centro de Controle Operacional (CCO) a posição de cada composição, permitindo a harmonização entre elas para garantir intervalos mais curtos entre as viagens e evitar exatamente colisões como a que aconteceu. Mas são sistemas que precisam de modernização, o que não é o caso do implantado no Metrô do Recife.
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51% é o percentual que representa o orçamento anual liberado pelo governo federal diante do custo que o Metrô do Recife necessita de fato para operar bem