Absurdo, absurdo e absurdo. Essa reportagem precisa ser iniciada desta forma porque é inacreditável que a Prefeitura do Recife continue, depois de 16 anos, “desligando” toda e qualquer fiscalização eletrônica de trânsito à noite e durante a madrugada quando as estatísticas de segurança viária da própria gestão municipal comprovam que o ato tem contribuído para a violência nas ruas e avenidas da cidade.
O mais recente Relatório Anual de Segurança Viária do Recife 2022, com dados referentes a 2021, constatou que 49% dos sinistros de trânsito (não é mais acidente de trânsito que se diz, segundo a ABNT. Entenda) com vítimas fatais aconteceram no horário da noite e da madrugada no ano passado. Esse horário é compreendido das 18h à 0h (noite) e da 0h às 6h (madrugada).
O relatório, inclusive, é o segundo realizado pela Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano do Recife (CTTU) em parceria com a respeitada entidade Bloomberg de Segurança Viária Global (BIRGS), referência mundial no setor e que presta consultoria ao município desde 2020.
Das 88 mortes registradas no trânsito em 2021 no Recife, 15 foram pela manhã, 23 à tarde, 37 à noite e 11 de madrugada.
O peso que a noite e a madrugada têm nas estatísticas de mortes e ferimentos no trânsito fica ainda mais evidente quando o recorte é sobre os registros da manhã e da tarde. Ou seja, entre 6h e 18h.
Confira a série de reportagens Mutilados - As verdadeiras vítimas do trânsito
Há 16 anos o Recife desliga a fiscalização eletrônica à noite
Não é mais acidente de trânsito. Agora, a definição é outra nas ruas, avenidas e estradas do Brasil
Segundo o relatório, os dois horários - quando a frota veicular que circula nas ruas e avenidas é pelo menos 60% maior do que a noite e a madrugada - respondem, juntos, por 52% dos sinistros de trânsito que resultam em mortes.
E a constatação do absurdo que é a fiscalização eletrônica de trânsito deixar de notificar até mesmo o excesso de velocidade entre às 22h e às 5h na capital pernambucana não para por aí. Quando o recorte é sobre os 1.596 sinistros com feridos registrados na capital em 2021, os dados também impressionam.
O relatório apontou que 24% aconteceram à noite e de madrugada, enquanto 76% foram de manhã e à tarde. Ou seja, 576 sinistros pela manhã, 633 à tarde, 335 à noite e 52 de madrugada.
SÃO 16 ANOS DESLIGANDO A FISCALIZAÇÃO ELETRÔNICA
Apesar dos esforços técnicos da CTTU, conseguindo reduções médias de 50% nos sinistros com vítimas do trânsito, desde 2006 o Recife desliga a fiscalização eletrônica das 22h às 5h. Não se tem notícia de outra cidade brasileira que faça o mesmo.
Na época, o juiz José Marcelon Luiz e Silva, então na 1ª Vara da Fazenda Pública da Capital, determinou o desligamento dos equipamentos (em 2006 eram apenas os bandeirões, chamados de lombadas).
O magistrado foi favorável a uma ação civil pública do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), que teve como autora a promotora Andréa Nunes. O Recife tinha apenas três equipamentos (Na Cabanga, na Avenida Alfredo Lisboa e na Avenida Abdias de Carvalho) e o argumento do MPPE era de que havia um aumento no número de assaltos nessas áreas.
Embora os registros não fossem, comprovadamente, nos pontos onde havia fiscalização eletrônica. A CTTU explica que recorreu até onde foi possível, mas em 2012 a apelação foi julgada pela 2ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), que confirmou a sentença de 1º grau. E, em 2013, a decisão transitou em julgado, ou seja, não cabia mais recursos para modificação da sentença.
Segundo a autarquia, a fiscalização à noite tem sido feita com agentes de trânsito, uma forma de conseguir coibir o excesso de velocidade, por exemplo, sem desrespeitar a decisão judicial. Por isso, blitzes têm sido realizadas com frequência em diferentes áreas da cidade para coibir, principalmente, os rachas praticados por condutores.
REAÇÃO
Renato Campestrini, advogado especialista em legislação de trânsito e que atua junto à Associação Brasileira das Empresas de Engenharia de Trânsito (Abeetrans), é um dos profissionais que questionam a inércia do município do Recife.
Ele argumenta que o município deve recorrer da decisão, principalmente tendo os dados estatísticos que comprovam o equívoco da medida sob a ótica da segurança viária.
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“A sentença transitou em julgado até que fase? Se foi no TJPE, o município pode recorrer a uma instância superior, como é o caso do STJ e até mesmo do STF, por exemplo. Ele tem competência e capacidade para tentar reverter essa situação. Seja pela procuradoria ou pela empresa pública que o representa”, alerta.
“Causa estranheza ver o município aceitar essa situação tranquilamente. Ainda mais com essa estatística que aponta um percentual de 49% dos óbitos registrados à noite e de madrugada. Só ela já é um argumento mais do que plausível para recorrer da decisão judicial”, acrescenta.
“O certo é que a fiscalização desse tipo de infração nas vias urbanas é do município e ele é a parte interessada em recorrer”, finaliza.
OUTRAS SITUAÇÕES
Em 2018, o então prefeito Geraldo Julio (PSB) por pouco não cedeu a um pedido do então vereador Marco Aurélio (PRTB) para desligar por 30 dias e nos horários de pico da manhã e noite os equipamentos de fiscalização eletrônica de velocidade na cidade.
Houve uma grita de importantes atores da sociedade civil organizada, como professores de engenharia e transportes da UFPE e da Associação Metropolitana de Ciclistas (Ameciclo), que chegou a acionar a Justiça. O prefeito desistiu.
Mas em 2019, o Executivo municipal sancionou a Lei 18.643 que ampliou em 1h a não autuação dos avanços de semáforos à noite no Recife. Quem assinou a sanção foi o então vice-prefeito Luciano Siqueira (PC do B).
CONFIRA O RELATÓRIO NA ÍNTEGRA:
Relatório Anual de Segurança Viária 2022 by Roberta Soares on Scribd
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