Transporte público em crise: quem tá dentro quer sair. Uber e 99 Moto estão levando o passageiro cansado do transporte público ruim

Aplicativos de transporte, especialmente Uber e 99 Moto, estão ‘roubando’ o passageiro, que quer fugir do transporte público ruim

Publicado em 26/12/2024 às 8:00
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O sentimento não é de hoje, mas nunca foi tão persistente: quem está dentro do transporte público coletivo e urbano do País quer sair. Ainda é assim. A fuga acontece há pelo menos duas décadas, só que em tempos de aplicativos de transporte de passageiros - quando o transporte vai até você, onde estiver e a qualquer horário -, ela ganhou dimensões difíceis de serem combatidas.

E com a introdução da motocicleta nesse universo, com os serviços de Uber e 99 Moto, a batalha está sendo perdida, principalmente nas mais de quatro mil cidades brasileiras onde a versão digital do mototáxi chegou desde o fim de 2021 - a maioria no Norte e Nordeste do País, vale ressaltar.

O desafio do poder público e dos operadores de transporte tornou-se ainda maior, já que o passageiro tem sido ‘roubado’ pelos aplicativos porque se cansou do serviço ruim dos ônibus, metrôs e trens nas cidades. Esse cansaço é antigo, mas antes ele só tinha opções de deslocamentos caras, o que mudou com a democratização da mobilidade proporcionada pelos aplicativos.

Mesmo no caso do mototáxi, serviço perigoso e que tem gerado muitos custos à saúde pública e à segurança viária, é impossível negar a democratização da mobilidade que ele proporciona.

“Sei do perigo de andar de moto, em avenidas e até rodovias com muito movimento de carros. Me sinto mais segura, sem dúvida, num ônibus, ao menos na questão dos acidentes (a definição agora é sinistro de trânsito, segundo o CTB e a ABNT). Mas o transporte é ruim. É lotado nos horários que a gente precisa ir trabalhar, os ônibus estão velhos e muitas vezes a espera é longa. O metrô, então, nem se fala. Só sabe quem usa”, desabafa a cabeleireira Beatriz Nova, que usa o sistema pelo menos três vezes por semana e tem substituído as viagens de metrô e ônibus pelo Uber e 99 Moto.

PESQUISA NACIONAL CONFIRMA FUGA DO PASSAGEIRO EM BUSCA DE PRATICIDADE E AGILIDADE DOS APLICATIVOS

BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM
Imagem de duas pessoas numa moto. Os números de atendimentos às vítimas das motos têm assustado até mesmo os socorristas do SAMU. No Grande Recife a explosão impressiona - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

O sentimento de Beatriz Nova é real e está refletido em pesquisas. A mais recente, divulgada em agosto de 2024, pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), reafirma a fuga histórica e confirma que ela está maior e mais rápida devido aos aplicativos de transporte.

O estudo constatou essa perigosa migração - que vem sendo validada na explosão dos números de quedas, colisões, mortes e mutilações de ocupantes de motos na saúde pública. A saída do passageiro do transporte público para os apps teve uma evolução expressiva, passando de 1,0%, em 2017, para 11,1%, em 2024.

E o crescimento foi verificado, principalmente, na população de baixa renda. Segundo a pesquisa CNT, dentre as pessoas que substituíram o ônibus pelos aplicativos de transporte, 56,6% pertencem à classe C e 20,1% às classes D/E. Quase 60% (56,9%) dos entrevistados afirmaram que deixaram de usar totalmente o ônibus (29,4%) ou diminuíram o uso (27,5%).

MESMO INSEGURO, PASSAGEIRO VAI PARA OS APLICATIVOS COM MOTOS

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Imagem de duas pessoas numa moto. São Paulo é atualmente a única cidade onde o transporte de mototáxi digital não opera. Foi proibido pela prefeitura devido ao perigo - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

Nem mesmo o risco iminente de se envolver em sinistros de trânsito é suficiente para fazer com que a população desista de fazer viagens nos apps de moto.

A Pesquisa CNT constatou que mais da metade das pessoas que usam Uber e 99 Moto apontam o risco de quedas e colisões na garupa do veículo - 58,5%. A falta de equipamentos adequados de segurança - EPIs e, principalmente, capacetes adequados e seguros - também pesa para 17,1% dos entrevistados.

Em 2017, o percentual de pessoas que usavam aplicativos era de 1%. Agora, sete anos depois (e com o surgimento, no fim de 2021, da modalidade com motos) é de 11%. O crescimento traduz um anseio da população por um transporte mais rápido, confiável e com maior nível de conforto (pelo menos no caso dos apps com carros) - alerta a pesquisa.

A migração para os serviços de aplicativos de transporte com motos, inclusive, tem acontecido com força mesmo com o aumento do custo de se transportar com esses veículos. A Pesquisa CNT de Mobilidade Urbana aponta que o custo subiu mais de 10% em relação a 2017 e, mesmo assim, a população tem deixado o ônibus pelas motos.

AVALIAÇÃO NEGATIVA DO TRANSPORTE PÚBLICO QUASE DOBROU

FILIPE JORDÃO/JC IMAGEM
Imagem de um ônibus lotado. Falta de conforto e previsibilidade do transporte público afasta o passageiro para os apps de moto, por exemplo - FILIPE JORDÃO/JC IMAGEM

O transporte público brasileiro segue com uma imagem negativa pelo País e vai ser tarefa árdua reverter esse quadro. Em comparação com a edição anterior da Pesquisa CNT, realizada em 2017, a parcela da população que considera o transporte um problema quase dobrou.

Em sete anos passou de 12,4% para 24,3%. O percentual de pessoas que utilizam o ônibus também diminuiu. Neste ano, o quantitativo é 14,3% menor na comparação com 2017, quando a parcela que utilizava esse veículo era de 45,2%. Os sistemas de metrô, por outro lado, tiveram uma redução bem menor - o que pode ser explicado pela previsibilidade e agilidade que os sistemas sobre trilhos têm: a redução foi de 4,6% para 4,2%.

Fatores que podem ter influenciado a queda são o aumento da utilização do carro próprio, que passou de 22,2% para 29,6% no período, e a obtenção de moto própria, que também teve um salto significativo. A utilização desta mais que duplicou, saltando de 5,1% para 10,9% em sete anos.

MAIS CONFORTO NO TRANSPORTE, MESMO QUE CUSTE MAIS CARO

Embora o valor das passagens seja um fator que também influencia na fuga do passageiro - mais de 60% apontam que a redução da tarifa seria um atrativo para voltar ao sistema -, um dos resultados que chama atenção na Pesquisa CNT é que existe uma boa parcela dos passageiros que estaria disposta a pagar mais para dispor de viagens mais confortáveis e menos impactantes ao meio ambiente.

A pesquisa indica que mais de 57% dos entrevistados estão dispostos a pagar uma tarifa mais cara para viajarem somente sentados nos ônibus. Em relação à sustentabilidade, 52,6% afirmaram estar dispostos a pagar uma tarifa diferenciada por uso de veículos menos poluentes e 32,1% por ônibus elétricos.

A primeira versão da Pesquisa CNT de Mobilidade da População Urbana foi realizada em 2017, sendo atualizada agora, em 2024. Mais de 3 mil entrevistas foram realizadas em 35 municípios do País.

ESTÍMULO AO USO DE MOTOCICLETAS E OMISSÃO NA REGULAMENTAÇÃO AOS APLICATIVOS

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Imagem de dois homens numa moto. A explosão em muitas cidades do transporte remunerado de passageiros com motocicletas, como os serviços Uber e 99 Moto é um fenômeno que está acontecendo sem nenhuma reação do poder público ou da sociedade - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

Os números da Pesquisa CNT assustam o setor de transporte público coletivo urbano, que vê uma permissão silenciosa das mais diferentes esferas do poder público.

Omissão por parte de muitas prefeituras, que têm a responsabilidade legal de regulamentar ou proibir o serviço de transporte de passageiros com motos, e dos Estados porque, como aconteceu em Pernambuco, concede isenção de IPVA para proprietários de motos ou parcelamento de dívidas em dez vezes.

“Não há estímulo para o transporte público, mas não faltam ações que favorecem o transporte individual. O serviço de aplicativo com motos está operando em várias cidades completamente ilegal, como é o caso do Recife - que faz vista grossa ao problema -, ao mesmo tempo em que a prioridade viária aos ônibus não avança nem na capital nem na RMR”, critica um empresário, que opera no Grande Recife, em reserva.

“E como se não bastasse, o governo do Estado decidiu estimular ainda mais a aquisição e o uso de motos, com isenções e parcelamentos do IPVA, por exemplo. Nós vemos até mais estímulo à bicicleta do que ao transporte público coletivo, que responde por 80% dos deslocamentos da população nos centros urbanos. É absurdo, o tempo passa e nada muda”, acrescenta em tom de desabafo.

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