ENTREVISTA

"É preciso paciência". Cientista que foi responsável por Programa Nacional de Imunização comenta vacinação da covid-19

Um dia após apresentação do plano de vacinação do governo federal, epidemiologista Carla Domingues comenta as dificuldades para aplicação total do imunizante contra a covid-19

JC
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Publicado em 17/12/2020 às 10:53 | Atualizado em 17/12/2020 às 11:15
ARNALDO ALVES/ANPR
Carla Domingues, então representante do Ministério da Saúde, na XVII Jornada de Imunizações, em 2015 - FOTO: ARNALDO ALVES/ANPR

A epidemiologista e coordenadora do Programa Nacional de Imunização (PNI) entre os anos de 2011 e 2019, Carla Domingues, foi entrevistada no Programa Passando a Limpo, da Rádio Jornal, na manhã desta quinta-feira (17), pelos jornalistas Geraldo Freire, Ivanildo Sampaio e Mirella Martins sobre o plano de vacinação contra a covid-19, apresentado nessa quarta-feira (16) pelo governo federal. Confira abaixo a íntegra da conversa.

Rádio Jornal - Agora [com a apresentação do plano] as coisas pegam ritmo ou a gente vai permanecer cheio de dúvidas?

Carla Domingues: Nós vivemos um momento muito conturbado e desnecessário, [já] que o programa de imunizações sempre foi muito estruturado, sempre houve um consenso no Brasil em relação à vacinação, por isso esse programa sempre foi considerado exitoso. Eu acredito e espero que daqui para frente todas essas confusões que foram geradas, do Ministério dizer que não vai comprar vacina de São Paulo, São Paulo falar que iria vender vacina para os estados, e os estados começarem a fazer uma vacinação separada do plano nacional, tenham sido resolvidas. Ontem, na apresentação do plano, havia vários governadores, inclusive de partidos de oposição mostrando que parece que vamos entrar em um consenso de que a vacina é a única saída para esse país, e que a gente precisa ter a população vacinada contra a covid.

» Conheça o plano de vacinação contra a covid-19 lançado pelo governo federal nesta quarta (16)

RÁDIO JORNAL - Como a senhora avalia a atuação de um governo que passa a discutir a exigência de que pessoas assinem um termo de responsabilidade para receber a vacina aprovada? De um presidente da República que declara taxativamente que não vai se vacinar e ponto final? São medidas e declarações que parecem ameaçar um alcance de imunidade no país. Até que ponto esses posicionamentos do governo brasileiro podem prejudicar, de fato, o alcance de uma imunidade em tempo curto e eficiente?

Carla Domingues: Quando o laboratório termina de fazer um produto, tanto medicamento, quanto vacina, ele tem os dados da fase 3, que são os conclusivos do estudo, que conseguem apresentar que essa vacina é segura e eficaz e que tem qualidade. Ele então apresenta um dossiê para a Anvisa, que dá um registro definitivo. Em função da pandemia, a Anvisa criou uma excepcionalidade chamada de registro emergencial, que tem como objetivo agilizar esse processo de entrega do registro definitivo. Para vocês terem uma ideia, o registro definitivo poderia demorar, antes da pandemia, em torno de um a dois anos, de tamanha complexidade dos dados exigidos. Para facilitar esse processo, a Anvisa criou o emergencial.

No entanto, ao mesmo tempo que a Anvisa falou que iria facilitar, colocou nesse termo de registro emergencial uma exigência de termo de consentimento, que só é exigido ainda na fase clínica, quando está em estudo, porque o pesquisador ainda não tem dados de segurança completos. Então a ciência exige que o participante diga que concorda em participar da pesquisa como voluntário. Ao meu ver, o erro não é do governo federal, é da Anvisa. Na medida que ela disse que iria criar um termo emergencial para facilitar, ela criou um complicador, porque a população vai ter que assinar esse termo de consentimento para participar da campanha de vacinação, o que vai dificultar o processo.

Você imagina em uma fila ter que chamar as pessoas para assinar o termo? A população não vai entender isso, porque toda vez que ela comparece ao serviço, é porque o governo está dizendo que ela precisa tomar a vacina. Ela não foi convidada a participar de uma pesquisa, ela está acreditando que essa vacina é segura, eficaz e que vai trazer benefícios para a população. Esse termo só vai confundir a população, e eu acredito que o que tem que ser revista é essa decisão da Anvisa, [porque] se ela continuar a ser tomada, o governo vai ser obrigado a seguir. Por isso que os laboratórios não estão entrando com esse pedido aqui no Brasil, estão indo direto para o registro definitivo, o que pode atrasar a vacinação.

RÁDIO JORNAL - Foram três pedidos de esclarecimentos do STF sobre o programa de vacinação, esse termo de responsabilidade e o próprio presidente declarando que não vai tomar vacina. Com isso, qual é o número de brasileiros que precisamos vacinados para podermos voltar à normalidade?

Carla Domingues: O termo de responsabilidade do presidente é diferente do termo de consentimento que a Anvisa está colocando. A Anvisa está colocando o termo de consentimento só se houver o registro emergencial. Se o laboratório entrar com registro definitivo, isso cai por terra. O que o presidente colocou é que todo mundo, independente do registro ser emergencial ou definitivo, vai ter que se responsabilizar por um possível efeito adverso. Isso não tem cabimento. Vacina, como qualquer medicamento, pode ter efeito adverso, e é responsabilidade do estado e do laboratório assumirem as consequências disso. Claro que a gente espera que sejam casos raríssimos, mas podem acontecer. Se você tiver alguma complicação, o estado tem que assumir seu tratamento, e o laboratório tem que apoiar. Não podemos jogar essa responsabilidade em cima do cidadão, ele foi convocado a tomar a vacina. É isso é que a gente precisa, dessa união em torno de que não há necessidade do termo consentimento ou de responsabilidade. A gente precisa que a população compareça voluntariamente e que ela busque a vacinação.

RÁDIO JORNAL - Quando poderemos respirar mais aliviados que essa pandemia passou? Só podemos dizer isso quando todas as fases de vacinação forem concluídas?

Carla Domingues: Nós só vamos ter impacto quando terminarmos todas as fases. A gente começa pelos profissionais de saúde, que são os mais vulneráveis e estão na linha de frente, porque além deles adoecerem e poderem faltar e não atender à população, eles também podem ser uma fonte de infecção. Sempre em uma pandemia, ou epidemia, se começa a vacinar os profissionais de saúde. Depois, você olha aqueles grupos que têm maior risco de adoecer, ter complicações e vir a óbito. Hoje, estamos falando da população idosa e das pessoas com comorbidades - doenças cardíacas, respiratórias, problemas renais, com câncer. Depois, você começa a vacinar os professores, os trabalhadores do transporte, a força de segurança, e, aí, começa a vacinar a população em geral. Até que atinja isso, vamos precisar de muita vacina. A gente precisa entender que mesmo que o Brasil comece a vacinar os profissionais de saúde em fevereiro, a população vai ter que continuar usando máscara, fazendo distanciamento social, lavando as mãos, usando álcool em gel, porque ainda são as medidas que evitam a transmissão da doença, é o que a gente ainda tem em mãos e que é possível utilizar até que toda a população seja vacinada.

RÁDIO JORNAL - Muitas das instalações onde são aplicadas as vacinas, no Recife, por exemplo são precárias, e as condições de trabalho dos profissionais são ainda piores. Em uma campanha de vacinação nacional, os estados têm condição de aplicar essa vacina com êxito? Essas instalações têm como fazer esse trabalho?

Carla Domingues: Todas as instalações de vacinação são municipais no Brasil. Pode ser que alguns estados criem centros imunobiológicos especiais para vacinar a população vulnerável, mas a maioria das salas de vacina são de responsabilidade dos municípios, e aí vai da realidade de cada um: tem municípios com estrutura muito boa, outros com instalações deficientes, mas mesmo essas têm condições de armazenar vacinas de qualidade, e a população pode ficar segura, porque quando ela chegar, ela vai manter todas as condições de segurança, como a gente faz com a de sarampo, da polio, da meningite e da própria influenza.

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RÁDIO JORNAL - Estão falando na possibilidade de que a fila vai acabar depois de um ano e seis meses, mais ou menos. Já aconteceu outras vezes ou é a primeira vez que temos um prazo tão esticado para aplicação da vacina?

Carla Domingues: Acho que não temos nenhum outro de necessidade de  vacinar a população como um todo. Até para a febre amarela, que é recomendada há mais de 40 anos, a população não é toda vacinada. Agora, imagine o desafio de vacinar em torno de 150 milhões de brasileiros - já que crianças e adolescentes até 18 anos não serão vacinados porque não existem estudos clínicos que mostrem que a vacina é segura para essa população, bem como para gestantes e lactantes. Esses grupos não serão vacinado tão cedo, enquanto não houver estudos para essa população. É um momento de escassez mundial, o mundo inteiro está dizendo que vai vacinar toda a sua população, são 7 bilhões de pessoas. Você imagina em um curto prazo de tempo ter, em um ano, uma vacina disponível e entregue para começar a vacinação? Não é possível a gente pensar em vacinar 7 bilhões [de pessoas] em 2 ou 3 meses. Temos que ter responsabilidade social de não querer pular a fila, deixar para os idosos, pessoas com comorbidades, para os professores. É preciso ter um pouco de consciência de respeitar a fila e entender que o nosso momento vai chegar.

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