As feridas e as dores vividas na Saúde de Pernambuco foram escancaradas com a maior crise sanitária em escala global deste século. A pandemia de covid-19 magnifica as tensões e os problemas que só aumentam, ao longo do tempo, no Sistema Único de Saúde (SUS).
Foi jogada luz a uma deficiência na estrutura física dos equipamentos de saúde (postos, unidades de pronto atendimento e hospitais), à falta de disponibilidade de materiais, equipamentos e medicamentos, como também à carência e à distribuição de profissionais.
E o futuro governador do Estado precisa não apenas reconhecer os problemas do setor, mas se mobilizar para sanar as chagas da saúde pública abertas pelas precárias condições de atendimento à população.
Não restam dúvidas de que a tarefa de casa deve começar por um reordenamento do modelo de assistência à saúde do Estado.
A Agenda Mais SUS, projeto do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e da Umane, revela que Pernambuco assume a 15ª posição no ranking de cobertura de atenção primária à saúde (APS), em comparação com outras unidades federativas.
O levantamento da instituição identifica os principais desafios enfrentados pelo sistema de saúde brasileiro, que se vê diante da necessidade de se preparar para um futuro desafiador.
O trabalho do IEPS também desponta com o objetivo de contribuir com o debate político eleitoral, ao apresentar propostas para o aprimoramento do SUS.
Ao JC, o IEPS apresentou um recorte estadual de indicadores do setor. Segundo o levantamento do instituto, a cobertura da APS em Pernambuco cresceu na última década. Em 2010, a taxa era de 72%. Dez anos depois, 82% - um crescimento de dez pontos percentuais.
Ainda assim, em comparação com os demais Estados do Nordeste, Pernambuco encontra-se com uma taxa aquém do ideal, com o menor índice de cobertura quando comparado a seus pares.
Em primeiro lugar na cobertura, está o Piauí, com 99%, seguido pela Paraíba (98%), Sergipe (93%), Ceará e Maranhão (empatados com 88%), Rio Grande do Norte (86%), Bahia (84,3%), Alagoas (83,6%) e Pernambuco (82%).
Sim, também é da alçada do governador cuidar da atenção primária à saúde (APS) - conhecida como atenção básica. A ele compete, entre outras atribuições, participar efetivamente na qualificação da APS em parceria com os municípios.
O problema apontado pelo levantamento do IEPS é que os recursos destinados à APS nos últimos anos têm se mostrado insuficientes para cobrir a atual necessidade de serviços.
De acordo com a plataforma E-Gestor AB, do Ministério da Saúde, estima-se que aproximadamente 50 milhões de brasileiros ainda não estão cobertos por serviços da atenção básica. Desse total, 1,7 milhões estão em Pernambuco, o que representa 3,4% da população descoberta pela APS.
Ou seja, sem uma porta de fácil acesso a unidades e profissionais de saúde que trabalhem na prevenção de doenças, no diagnóstico, tratamento e reabilitação.
"O nosso Estado precisa de uma política pública indutora de uma atenção primária de qualidade. Somente dessa maneira, haverá impacto na prevenção e no controle de doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, cujo agravamento levam à maioria dos problemas de saúde nos hospitais", acredita o médico sanitarista Tiago Feitosa de Oliveira, professor do Centro de Ciências Médicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Na visão dele, não adianta o governo estadual investir recursos na criação de mais leitos de terapia intensiva (UTI) ou de mais hospitais.
O que se faz essencialmente necessário ao futuro governador é enfrentar o esgotamento da assistência hospitalar estadual, que tem como origem um modelo de atenção focado na remediação da doença já instalada, ao invés de se envolver com caminhos efetivos de prevenção.
Nesse raciocínio, o estudo do IEPS aponta que ampliar o investimento é condição necessária para melhorar o sistema público de saúde, mas só isso não é o suficiente.
É preciso que existam também modelos efetivos de financiamento, governança e gestão, assim como uma ação intensa de qualificação da força de trabalho.
Com esse olhar, para ampliar a atenção básica no SUS, o futuro governador de Pernambuco precisa seguir de mãos dadas com os gestores municipais, na cola da Estratégia Saúde da Família (ESF), modelo que já se mostrou eficaz porque chega até quem mais precisa de cuidados.
Mas, infelizmente, desde a PNAB 2017 (Política Nacional de Atenção Básica), a ESF tem sofrido redução de financiamento, com diminuição do número de agentes comunitários de saúde (ACS) e aumento da sobrecarga laboral antes mesmo da pandemia de covid-19.
"A Estratégia Saúde da Família (ESF) precisa cobrir 100% do território pernambucano, pois é ela a porta de entrada para hierarquizar a assistência à saúde no Estado e organizar as demandas", frisa a médica epidemiologista Ana Brito, pesquisadora da Fiocruz Pernambuco.
Ou seja, com esse depoimento, Ana Brito faz um chamado para que as autoridades passem a reconhecer que a ESF é capaz de indicar a rota que os pacientes precisam seguir, a fim de cuidar de problemas de saúde que, aparentemente, podem ser simples de ser resolvidos, mas que, por falhas na condução, podem levar meses e anos para ser tratados.
A situação vivida por Jaqueline da Silva Melo, 33 anos, moradora do Cabo de Santo Agostinho, município do Grande Recife, retrata bem a dificuldade que boa parte da população encontra para receber uma assistência de qualidade. Desempregada, ela tem um bebê de 10 meses que está internado no Hospital da Restauração (HR), no bairro do Derby, área central do Recife.
Ela conta que ele teve um problema intestinal e precisou fazer uma cirurgia. Após o procedimento, ela descobriu que tiraram o apêndice do filho.
"Eu andava de hospital em hospital. Levei ele pro infantil, no Cabo de Santo Agostinho. Chegou lá, a médica disse que ele só tinha cólica e mandou pra casa. Passei a segunda e a terça em casa com ele. Quando foi na quarta, retornei ao hospital do Cabo. Deram remédio a ele e fui pra casa novamente. E na sexta, voltei de novo, e ele chorava muito. A médica disse que algo a mais que estava prejudicando ele", relembra Jaqueline.
Segundo a mãe, a profissional chegou a perguntar se ela teria condições de levar o bebê para fazer um ultrassom.
"Eu disse que não tinha, pois um ultrassom abdominal é R$ 160. Ela disse que, se eu fosse pra casa, era arriscado ele morrer. Transferiram pro HR. Fez a cirurgia no sábado e, na segunda, deram alta."
Ainda de acordo com Jaqueline, mesmo após o procedimento, o filho não melhorou.
"Da terça para quarta, piorou porque infeccionou a cirurgia dele. Mandaram pro HR de novo. Agora quem está sofrendo é ele, um bebê de 10 meses. Não sei a previsão de alta, de quando vou sair daqui. Tenho duas filhas pequenas em casa, e o marido desempregado. Estou passando por uma situação difícil, mas eu creio que o Senhor vai me tirar daqui. Se eu não trouxesse ele (filho), ele vinha a óbito", relata Jaqueline, emocionada.
Em resposta a questionamentos do JC sobre o investimento no setor, a Secretaria Estadual de Saúde (SES) informa que, há 11 anos, Pernambuco é o Estado do Nordeste com maior volume de recursos aportados na Saúde e "figura entre os três Estados brasileiros que mais investem percentualmente recursos próprios no setor".
No ano passado (2021), segundo a pasta, foram R$ 4,880 bilhões em recursos próprios do tesouro estadual, o que corresponde a 17,2% da receita corrente líquida do Estado.
A SES destaca que esse percentual é "muito acima" do mínimo constitucional, de 12%. "Este valor é, inclusive, mais que o dobro do que foi aportado pelo governo federal, na Saúde do Estado, também no ano passado (R$ 2,231 bilhões)."
Nesse contexto, a secretaria esclarece que, ao longo dos últimos anos, tem ocorrido redução da participação federal nos investimentos com a Saúde.
"Em 2008, o Ministério da Saúde era responsável por 47% do gasto público com Saúde na rede estadual de Pernambuco, enquanto o Governo do Estado bancava 53%. Hoje, mesmo após a grande ampliação na rede de assistência, a participação do governo federal, ente que concentra maior fatia da arrecadação de impostos no País, caiu para apenas 31%, e a do Estado, que tem menor arrecadação, cresceu para 69%", acrescenta.
Há meses, os problemas de infraestrutura e superlotação na maior emergência pública do Norte e Nordeste do Brasil têm se tornado cada vez mais frequentes.
Resolver as precárias condições do Hospital da Restauração (HR), com corredores superlotados e macas pelo chão, é um dos desafios do futuro governador.
A profissional autônoma Miriam Alves da Silva, 39 anos, foi ao HR, nos últimos dias, visitar o primo, de 24 anos. Ele está internado, em leito de terapia intensiva (UTI), há três meses, após um sinistro de trânsito.
"É um descaso. A gente chega para entrar às 15h, vem às 14h, 14h30, e só entra de 14h30, às vezes até 17h. Não tem lugar para sentar. Para a gente fazer uma reclamação, a ouvidoria só funciona de manhã. Vim umas três vezes já. Pedi para os médicos da ortopedia irem na UTI acompanhar as pernas dele, que estão muito graves. Tenho que ir na ouvidoria, só funciona das 8h ao meio-dia, e eu só venho à tarde para a visita. Prefiro vir presencial para falar, mas não adianta", conta Miriam.
Ela acrescenta que o primo está com um acesso inadequado na boca. "Os médicos não têm culpa. Eles dizem que não tem material; que o material chega e some. Ele já pegou duas infecções no HR e ainda está com um cadarço amarrado (na boca). A orelha dele já foi até costurada. A pessoa sofre duas vezes: com o familiar (doente grave) e com o atendimento", lamenta.
A Secretaria Estadual de Saúde (SES) diz que o governo de Pernambuco já iniciou a primeira etapa das obras no HR, que inclui a recuperação de toda a fachada e também da coberta, "reforçando, assim, a estrutura do hospital contra processos de infiltração".
Além disso, de acordo com a SES, o processo licitatório para a segunda etapa das obras, que inclui a revisão e recuperação de toda a infraestrutura está em andamento.
"Ao todo, serão investidos R$ 24 milhões no HR, que também terá seu parque tecnológico renovado com a aquisição de novos equipamentos", acrescenta a pasta, sem informar prazos.
Não é só o Hospital da Restauração que precisa de um olhar atento e da atitude do próximo governador de Pernambuco. Com frequência, reportagens mostram os caos de hospitais públicos degradados e superlotados, com piso arrancado e tetos infiltrados.
Há filas de espera que parecem ser intermináveis para realização de cirurgias e, em muitos casos, famílias não conseguem informações sobre o quadro de parentes internados.
Questionada sobre reformas estruturais que estão previstas para os demais hospitais da rede, a Secretaria Estadual de Saúde (SES) informa que foram iniciadas este ano, com investimento de cerca de R$ 40 milhões do tesouro estadual, as obras de recuperação estrutural do Hospital Getúlio Vargas, no Cordeiro, Zona Oeste do Recife.
"A obra, que está sendo realizada em duas etapas, com previsão de conclusão em 25 meses, vai resolver definitivamente os problemas estruturais da unidade", garante.
Já o Hospital Otávio de Freitas, em Tejipió, também na Zona Oeste, deve ganhar uma nova emergência, segundo a SES.
"As obras devem ser licitadas ainda neste ano, com investimento de R$ 46 milhões e prazo de conclusão em 18 meses. A nova edificação, com 7,8 mil metros quadrados, vai abrigar as novas emergências adulto e pediátrica."
Em dezembro de 2021, a unidade inaugurou o novo pavilhão de Pneumologia e Tisiologia, além de concluir a reforma da nova UTI geral, que conta com 20 leitos. Atualmente, a unidade passa por obras de revitalização da fachada.
Em março deste ano, o governo de Pernambuco retomou as obras do Plano Diretor do Hospital Barão de Lucena. Nessa etapa, estão sendo construídas a subestação de energia elétrica e a estação de tratamento de esgoto.
Além disso, um novo elevador será instalado. O investimento é de R$ 10 milhões, e o prazo para inauguração é até o fim deste ano.