Diálogos mostram comemoração de PMs após chacina em Camaragibe: 'Tô feliz, tem que ser assim'

Relatório da inteligência da Polícia Civil comprova que policiais participaram de assassinatos após mortes de 2 colegas de farda, em setembro de 2023

Publicado em 11/03/2024 às 11:51 | Atualizado em 22/09/2024 às 22:34

Um relatório do núcleo de inteligência da Polícia Civil de Pernambuco, obtido com exclusividade pela coluna Segurança, do Jornal do Commercio, revela detalhes da participação de policiais militares na chacina de Camaragibe, no Grande Recife, ocorrida em setembro de 2023. Há, inclusive, diálogos com a comemoração de alguns deles.

O documento, produzido a partir da quebra dos sigilos telefônico e telemático de parte dos investigados, foi fundamental para que o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) decidisse denunciar 12 PMs à Justiça na semana passada. O grupo se tornou réu por triplo homicídio duplamente qualificado (motivo torpe e sem chance de defesa das vítimas). Mas o caso segue sob investigação porque outros assassinatos ainda não foram esclarecidos (relembre mais abaixo)

Em um dos áudios enviados por meio de WhatsApp, transcritos pelo núcleo de inteligência, um policial militar incentiva que o grupo faça a caçada ao vigilante Alex da Silva Barbosa, suspeito de atirar e matar o soldado Eduardo Roque Barbosa de Santana, de 33 anos, e o cabo Rodolfo José da Silva, 38, no bairro de Tabatinga, na noite de 14 de setembro. 

"Independente de qualquer coisa, meu véio, tem que fazer igual aos nossos irmãos do Sertão, quando pega, tora essas desgraças. Pode trocar tiro com a gente e deixar esses vermes vivos não, pra chegar na cadeia, se vangloriando, que tirou a vida de dois companheiros, dois pais de família, tem que torar, tem que pegar essas desgraças (...). Não atira na cabeça não, atira no tórax, debaixo da axila, de lado, meu irmão, atira no pulmão dele e socorre, deixa ele tomar no (...), o satanás levar esses desgraças."

No documento, a equipe do núcleo de inteligência ressalta que, na transcrição, "já se mostra a intenção de alguns policiais de não irem para a situação para prender ou tratar o caso de forma lícita e, sim, a realização de uma suposta vingança. Comenta ainda no local dos disparos que não sejam feitos na cabeça, possivelmente para não parecer execução".

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Documento do Núcleo de Inteligência da Polícia Civil - REPRODUÇÃO

REUNIÃO PARA DEFINIR SEQUÊNCIA DE ASSASSINATOS

Conforme denúncia do MPPE, após tomarem conhecimento das mortes dos PMs, o então comandante do 20º Batalhão da PM, tenente-coronel Fábio Roberto Rufino da Silva, e Marcos Túlio Gonçalves Martins Pacheco, que ocupava o segundo posto de comando da inteligência da PM, teriam acionado vários militares para dar início à perseguição a Alex e aos familiares dele. 

"Os denunciados tenente-coronel Marcos Túlio e tenente-coronel Rufino convocaram os denunciados e outros policiais, de serviço e de folga, para reunião realizada nas proximidades da FOP (Faculdade de Odontologia de Pernambuco), tendo estes sido propositalmente orientados e autorizados a comparecerem ao local em veículos sem placas, viaturas descaracterizadas, com vestimentas à paisana, utilizando balaclavas, fortemente armados, com armas 'cabrito' (não-oficiais), para realizarem a missão de caçada a Alex e seus familiares, no intuito de matá-los, em vingança à morte dos dois policiais, ocorrida horas antes", descreve o MPPE. 

Outro áudio analisado pelo serviço de inteligência da Polícia Civil reforça que houve a reunião entre os policiais. 

"Todo, todo, tem meio mundo de carro a paisana aqui, serviço de inteligência e umas viaturas do Bope e do RP (Radiopatrulha) dando apoio. Aí a gente, a ideia é a gente chegar lá na situação, fazer. (...) Aí depois a equipe ostensiva chega para dar apoio."

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Documento do Núcleo de Inteligência da Polícia Civil - REPRODUÇÃO

A equipe de inteligência traduziu o diálogo: "Por vezes o termo 'fazer' é utilizado no jargão criminoso/policial  como 'MATAR'. Pode se extrair da mensagem que a ideia seria 'matar' as pessoas e, depois, as equipes ostensivas chegariam para assumir oficialmente a ocorrência e os trâmites legais". 

"É DENTE POR DENTE"

Os diálogos entre os policiais seguem:

"Mata o pai dele, mata a mãe dele e quem tiver mais da família, pronto, deixa ele, deixa ele ficar pegando em fio elétrico."

"Sei que a vida dos companheiros não vai trazer mais, porém, ele vai se entregar? Ele ia tomar no (...) porque o pai dele, a mão dele e quem tivesse mais na casa, tchau pra o louro, é assim numa guerra a gente não pode poupar ninguém, não, é assim numa guerra a gente não pode poupar ninguém, é dente por dente, fogo por fogo, meu filho (...)"

"(...) A gente já conseguiu pegar a mulher dele aqui, já tava saindo da favela de uber. Aí a gente tá trabalhando ela aqui pra ver se dá onde ele tá. Me parece que ele tá querendo se entregar."

Para o serviço de inteligência, os policiais estão se referindo à companheira de Amerson Juliano da Silva, irmão de Alex. A mulher teria sido torturada pelos militares como forma de pressionar parentes do suspeito.

Pouco depois, Amerson e outros dois irmãos de Alex, Ágata Ayanne da Silva e Apuynã Lucas da Silva foram executados a tiros. Ágata chegou a transmitir ao vivo, por meio do Instagram, o crime. Ela e Amerson morreram na hora. Apuynã faleceu após ser socorrido e encaminhado para o Hospital da Restauração, no Recife. 

Os 12 PMs viraram réus justamente por esses três assassinatos.

COMEMORAÇÃO APÓS ASSASSINATOS

Outro áudio, atribuído à soldado Leilane Barbosa Albuquerque, diz: "Zerou, acabou, zerou, foi eu que mandei a foto para o senhor".

Para o serviço de inteligência, a mensagem significa que os crimes já teriam sido executados e que os policiais estariam voltando do local. 

"Eu tô feliz, pô, tem que ser assim mesmo, pô, mexeu com a gente, a gente tem que ir, matar pai, mãe, família, quem tiver, tem que matar mesmo, (...), tem que botar pra (...) mesmo, tem que arregaçar. (...) pense na alegria, hoje o inferno tá feliz."

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Documento do Núcleo de Inteligência da Polícia Civil - REPRODUÇÃO

Em outro diálogo, conforme aponta o serviço de inteligência, o soldado Emanuel de Souza Rocha Júnior demonstra tranquilidade após a sequência de assassinatos.

"Oxe, pelo que tô vendo vai ser de boa, visse? A gente ajeitou as coisas aí, muito coronel junto aqui também na situação. (...) Todo mundo a favor, todo mundo parabenizando, no DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), todo mundo a favor, tá bem padrão a situação toda, de forma geral."

O serviço de inteligência traduziu o sentimento do PM. "Demonstra tranquilidade por acreditar que não haverá repercussão criminal. Afirma que tinha muitos coronéis junto na situação, além disso teriam apoio popular e até no DHPP."

"SERVIÇO FOI BEM FEITO"

No diálogo entre os soldados, a comemoração continuou. 

"Eu pensei amor que hoje a gente ia comer, tomar alguma coisa para relaxar, a gente merece, o serviço foi bem feito, aí eu pensei nisso, uma pernoite lá aquele lugar."

Para o serviço de inteligência, o soldado Rocha Júnior sugeriu, em áudio, uma comemoração com a soldado Leiane "em referência às mortes ocorridas". 

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Documento do Núcleo de Inteligência da Polícia Civil - REPRODUÇÃO

OS RÉUS

Além dos dois tenentes-coronéis citados na reportagem, também viraram réus por suposta participação nesses crimes:

João Thiago Aureliano Pedrosa Soares, 1º tenente;

Paulo Henrique Ferreira Dias, soldado;

Leilane Barbosa Albuquerque, soldado;

Emanuel de Souza Rocha Júnior, soldado;

Dorival Alves Cabral Filho, cabo;

Fábio Júnior de Oliveira Borba, cabo;

Diego Galdino Gomes, soldado;

Janecleia Izabel Barbosa da Silva, cabo;

Eduardo de Araújo Silva, 2º sargento;

Cesar Augusto da Silva Roseno, 3º sargento.

Cinco desses policiais estão presos preventivamente: Paulo Henrique, Dorival Alves, Leilane Barbosa, Emanuel e Fábio Júnior. Os outros foram afastados dos cargos que ocupavam na época do crime, mas seguem trabalhando na PM. 

Fábio Roberto Rufino da Silva, inclusive, passou a comandar outro batalhão da PM, no Recife, mesmo após ser afastado do 20º BPM pela Justiça em dezembro de 2023

A Secretaria de Defesa Social (SDS) informou que, assim que for notificada da denúncia, os réus serão afastados das atividades.

As defesas dos réus ainda não se pronunciaram sobre a denúncia do MPPE. 

INVESTIGAÇÕES EM ANDAMENTO

Após esclarecerem os assassinados dos três irmãos de Alex, o MPPE e a Polícia Civil seguem investigando o caso para identificar os autores dos outros crimes.

Por volta das 9h de 15 de setembro, os corpos da mãe de Alex, Maria José Pereira da Silva, e da esposa dele, Maria Nathalia Campelo do Nascimento, 27, foram achados num canavial na cidade de Paudalho, Mata Norte do Estado.

Duas horas depois, Alex foi morto em Tabatinga. A PM alegou que houve uma abordagem e que ele teria reagido, resultando na troca de tiros.

A Polícia Civil e o MPPE também precisam esclarecer como foi a dinâmica das mortes dos PMs. Havia uma suspeita de que Alex poderia ter contado com ajuda de outra pessoa. Na ocasião, ele teria feito Ana Letícia Carias da Silva, de 19 anos, de escudo humano. Ela foi baleada e morreu, semanas depois, no Imip. 

Não há prazo para conclusão das investigações e para o envio de novas denúncias à Justiça. 


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