No subsolo de um inferninho paulista, banhado em luz vermelha, ao som de hinos do pop e faixas que mereciam mais reconhecimento, os corpos suados na pista de dança prendem a respiração por um momento quando ouvem os sintetizadores de Physical. A ode ao toque, à troca de fluidos e afetos e à adrenalina do desejo cantada por Dua Lipa criou uma espécie de transe coletivo que nenhuma outra canção conseguiu replicar naquela madrugada do início de março, poucas semanas antes da explosão do coronavírus no Brasil, quando as noites ainda pareciam intermináveis e os encontros, uma certeza.
A canção, assim como todo o Future Nostalgia, segundo disco da cantora britânica que chega nesta sexta-feira (27) às plataformas de streaming, uma semana antes do previsto devido ao vazamento ilegal na internet, ganha novos contornos diante da crise que vivemos. Espirituoso, sensual e enérgico o trabalho soa como uma necessária dose de endorfina em tempos de pandemia, isolamento social e necropolítica.
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Ao comentar o lançamento antecipado do disco, a artista britânica disse que não sabia se este era o momento certo, já que o mundo vive um estado de apreensão, mas que acreditava que as pessoas estão precisando de alegria, sentimento que a norteou durante a produção do álbum. De fato, Future Nostalgia remete às melhores noites de festa, quando somos atravessados pelos sentimentos mais diversos e complexos e chegamos em casa mais leves e esperançosos.
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O disco dribla a “maldição do segundo álbum” e se apresenta como uma evolução artística em relação à estreia da britânica descendente de albaneses. Inspirada no pop dos anos 1980, 1990 e 2000, de artistas como Gwen Stefani, Outkast, Madonna, Moloko e Blondie, Dua Lipa consegue, como sugere o título do trabalho, homenagear o passado sem cair no saudosismo ou tentar fazer um decalque. Há algo de atemporal nas canções, sensação capturada com maestria em faixas como Don’t Start Now, Levitating e Hallucinate (uma celebração do europop de Kylie Minogue e Sophie Ellis-Bextor), que evocam a confiança, o desejo e o hedonismo da disco music.
Essa interseção entre passado, presente e futuro é trabalhada por Dua Lipa não só na música, mas também nos visuais do projeto, com clipes esmerados, coloridos e vibrantes. Como algumas das grandes pop stars já fizeram antes dela, ela criou um conceito multiplataforma, criando conteúdos online que amplificam a potência das faixas. Tudo foi milimetricamente pensado e executado à perfeição e por isso é compreensível a frustração da artista quando o trabalho vazou. Mas, há, aí, também, algo de fascinante: a imprevisibilidade da vida e a possibilidade do trabalho ser consumido e ressignificado em um momento em que o mundo clama por escapismo.
A voz grave e distinta da artista ganha novos contornos neste trabalho, exala confiança e imprime personalidade em todas as faixas. Ainda que sejam dançantes (não há baladas emotivas), todas as faixas são carregadas de sentimento. Há, por exemplo, o êxtase da nova paixão em Love Again e Cool (com produção de Stuart Price, responsável por grande parte do clássico Confessions on a Dancefloor, de Madonna); a surpresa de encontrar o perigo na rua em Break My Heart, com sample certeiro de Need You Tonight (1987), da banda INXS; a autoironia de Good in Bed, que lembra os melhores momentos de Lily Allen.
Com co-autoria de Dua Lipa em todas as faixas, o disco reflete a identidade de sua intérprete e reflete a multiplicidade de uma jovem de 24 anos tentando se entender em um mundo que faz cada vez menos sentido. A narrativa da artista é atravessada por uma perspectiva feminista de suas experiências nas dinâmicas sociais, amorosas e pessoais. Este discurso aparece de forma mais direta na faixa-título, quando ela se auto-intitula uma fêmea-alfa, e em Boys Will Be Boys, que fecha o álbum, uma crítica ao machismo estrutural e o cerceamento da liberdade feminina.
Para ser política, a música pop não precisa ser necessariamente engajada. Clamar pelo direito à diversão e à felicidade é também uma forma de resistência, ainda mais quando quem está no poder se coloca abertamente contra o prazer e a favor da violência. Como Dua Lipa consegue capturar em Future Nostalgia, a dança carrega, também, contornos ritualísticos, indutivos do transe que aproxima daquilo que não se pode nomear ou prender.