Semanas antes de seu término a vigésima edição do Big Brother Brasil já vinha sendo classificada por muitos como histórica e se consolidou como tal com a vitória de Thelma Regina, segunda-feira (27). Com algumas mudanças no formato, como a participação de famosos, o reality show conseguiu se reinventar, engajou o público, mas foi marcante principalmente por pautar debates que extrapolaram o campo do entretenimento e ajudaram a colocar holofotes sobre questões estruturais da sociedade brasileira, como o racismo, machismo e desigualdades econômicas.
Muitos podem observar o BBB apenas como entretenimento (ele é), mas é uma tolice reduzir o programa a isso. Ali estão refletidas tensões sociais e o momento histórico pelo qual o Brasil atravessa. Observar cada edição - e seus vencedores - ajuda, sim, a ter um panorama do clima da época. Que Thelma tenha vencido esta edição, em um momento de caos e desesperança, e conseguido engajar e inspirar uma torcida tão aguerrida, entre anônimos e famosos como Taís Araújo, Iza, Preta Gil, Pabllo Vittar e Anitta, é simbólico. Como apontou Taís em seu post (repostado pela americana vencedora do Oscar Viola Davis), citando a pensadora Angela Davis, “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.
A edição de 2019 foi a de menor audiência da história do reality e foi vista como problemática ao consagrar uma campeã acusada de falas racistas durante toda a edição. O BBB20, portanto, nasceu cercado de expectativas. Para tentar dinamizar o formato após duas décadas, a produção trouxe a novidade dos famosos, entre artistas, atletas e influenciadores digitais, dividindo a casa entre eles (o Camarote) e anônimos (Pipoca). A estratégia deu certo já na primeira semana, quando as menções ao reality nas redes sociais superou a da edição passada.
Após vinte anos, muitos imaginavam (com razão) que os participantes entrariam no programa calejados e com scripts impecáveis. De fato, muitos tentaram copiar fórmulas que elegeram vencedores no passado, mas mesmo os famosos que foram com uma estratégia de marketing milimetricamente pensada, a exemplo da cantora Manu Gavassi, acabaram se entregando ao jogo e protagonizaram momentos marcantes. Aliás, uma prova do acerto no elenco e nas dinâmicas propostas foi o fato de todos, em algum momento, terem tido destaque (por bem ou por mal).
Com a eclosão da pandemia do novo coronavírus e a consequente necessidade do isolamento social, o programa se tornou um fenômeno ainda maior. Sem o futebol ou as novelas inéditas, o BBB se tornou, como ressaltou Tiago Leifert no discurso final, a disputa que todos acompanhavam. As festas do programa, o entretenimento de uma sociedade enclausurada. Virou nossa espécie de Show de Truman. Como no filme de 1998 estrelado por Jim Carey, aqueles personagens se tornaram quase familiares à audiência, provocando todos os tipos de emoção a partir da personificação de arquétipos como o herói, pessoa comum, vilão e inocentes.
O programa estava sempre entre os assuntos mais comentados nas redes sociais e mobilizou torcidas organizadas, das quais os famosos participaram avidamente, prometendo de brindes a lives caso seus favoritos permanecessem no programa. O ápice dessa polarização foi o paredão entre Manu Gavassi, Felipe Prior e Mari Gonzelez, que bateu mais de 1,5 bilhão de votos, entrando para o Guiness Book. O tribunal das redes sociais foi severo e não permitia nuances. De um dia para o outro, um participante passava de favorito a inimigo público número um.
A narrativa principal do programa, com o protagonismo das mulheres, se desenhou já nas primeira semanas. O ginasta Petrix Barbosa foi acusado de ter assediado a influenciadora digital Bianca Andrade durante uma das festas. A atitude, se em outros momentos passaria batida diante da naturalização das violências (físicas e emocionais) contra as mulheres, causou revolta na internet, amplificada posteriormente pelo plano gerido por Petrix e outros homens da casa de seduzir as participantes comprometidas a fim de “queimá-las” com o público.
Quando as participantes Marcela e Gizelly, que souberam da estratégia, expuseram para as outras mulheres da casa o que se passava, um dos momentos mais icônicos da edição ocorreu, quando todas se uniram e confrontaram o participante Hadson Nery. Apesar de não ter sido o mentor da trama, Hadson e suas atitudes machistas se tornaram um símbolo do que precisava ser combatido por elas.
Como acontece fora daquela dinâmica de enclausuramento, os homens negaram a tramóia e classificaram as mulheres de loucas. Mas, durante esse processo, outros quatro participantes disputavam a escolha da audiência para entrar na casa, confinados em uma caixa de vidro em um shopping. Lá, centenas de pessoas passaram a levar cartazes expondo a situação e exigindo que os escolhidos levassem a informação para as participantes.
Dito e feito: a entrada de Daniel e Ivy na mesma noite em que o público eliminou Petrix promoveu uma reviravolta na narrativa, rachou a casa entre homens e mulheres e, um a um, eles passaram a ser eliminados ao ponto de, entre os dez últimos participantes, restar apenas um homem, o ator Babu Santana. E foi de Babu o protagonismo da outra pauta essencial do programa: a discussão do racismo. Preto, gordo e de origem periférica, Babu foi colocado em dez paredões, o recorde de todas as edições, e muitos usavam justificativas como de que ele inspirava medo, ou que era agressivo, mesmo que suas atitudes fossem mais brandas do que seus concorrentes brancos e mais jovens.
O pente garfo que ele usava foi motivo de chacota para alguns participantes e acabou se tornando um símbolo de resistência, ainda que o confronto de Babu com suas antagonistas - algumas das quais faziam parte do grupo autointitulado de “fadas sensatas” - nunca tenha tocado, diretamente, na questão racial. O ator e Thelma expuseram as dificuldades impostas em todos os âmbitos da sociedade ao povo preto (termo que, dentro do programa, ele afirmou ser o correto para se referir aos afrodescendentes).
Vale ressaltar que no BBB19, três participantes pretos também levavam a questão racial para o centro do debate, tentavam sensibilizar os outros participantes, apontar comportamentos racistas, mas eram classificados, pejorativamente, de “militantes”. Paula, vencedora daquela edição, uma mulher loira e branca, por muitas vezes debochou desses ensinamentos. Thelma foi a única preta na sua turma de medicina e contou que já foi confundida com auxiliar de limpeza nos hospitais onde trabalhou e com vendedora em lojas onde estava como cliente. Agora, é a mais nova milionária do Brasil e um símbolo importante símbolo para milhões de pessoas.