Quando Karen e Barry Mason entraram no ramo de distribuição de publicações eróticas, jamais imaginaram que seriam peças importantes na história da comunidade LGBT nos Estados Unidos e que seu negócio, a livraria Circus of Books, se tornaria um símbolo de resistência. A inusitada história desse casal de origem religiosa e tradicional e de seu empreendimento é tema do documentário Atrás da Estante, um dos lançamentos recentes da Netflix.
Nos últimos anos, a Netflix tem cumprido um interessante papel de fomentar produções que lançam luz sobre a comunidade LGBT. Essas narrativas, historicamente apagadas, resultaram em obras impactantes que mostram os triunfos e sofrimentos de indivíduos e do movimento de forma mais ampla, como em A Morte e a Vida de Marsha P. Johnson (2017), de David France, Laerte-se (2017), de Eliane Brum; e Secreto e Proibido (2020), de Chris Bolan.
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Atrás da Estante também se debruça sobre uma história que poderia passar como uma nota de rodapé nos estudos sobre a sexualidade nos EUA não fosse o empenho de Rachel Mason, filha de Karen e Barry. A cineasta parte de entrevistas intimistas com seus pais, aliadas a um robusto acervo de imagens e documentos, além de depoimentos de seus irmãos, de funcionários e frequentadores da loja, para construir um mosaico rico e complexo da história LGBT em seu país, de meados dos anos 1970 até os dias de hoje.
Karen, uma jovem repórter, e Barry, cuja mente inventiva fez com que trabalhasse no departamento de efeitos especiais de filmes como 2001 - Uma Odisséia no Espaço, se conheceram quase que por acaso, em uma festa para jovens judeus solteiros. Ela chegou tarde, suas conhecidas já estavam indo embora, mas ela resolveu arriscar. Após alguns meses de namoro, casaram-se e iniciaram uma família. Por um tempo, conseguiram se sustentar graças a uma invenção de Barry, que aliou seu conhecimento de engenharia para aperfeiçoar máquinas de hemodiálise. Mas, depois de algum tempo e sem poderem pagar o seguro do equipamento, se viram sem renda.
Foi então que Karen viu um anúncio no jornal feito pelo magnata da indústria pornográfica Larry Flynt. Ele buscava distribuidores para suas revistas em vários pontos do país. O casal Mason viu a oportunidade como uma forma de pagar as contas enquanto buscavam outro meio de vida. Logo, tornaram-se grandes distribuidores de Los Angeles e, pouco tempo depois, adquiriram um espaço que já comercializava conteúdos pornográficos para fazerem de sede de seu negócio. A Circus of Books se especializou em material erótico gay e ao longo dos anos se tornou a maior distribuidora desse gênero nos EUA.
Pais de três filhos e membros de uma comunidade religiosa, eles mantinham o negócio em segredo, especialmente por Karen, que tinha medo de serem excluídos de seus ciclos sociais caso fossem descobertos. O assunto era tabu inclusive para os filhos, que não sabiam a natureza do negócio e eram orientados a olhar para o chão quando entravam na loja. Essas contradições tornam o filme fascinante. Karen e Barry enxergam a Circus of Books puramente como um negócio e não julgam seus clientes e funcionários. Ao mesmo tempo, ela não enfrenta sua homofobia internalizada até que, anos mais tarde, um de seus filhos se assume gay.
A forma delicada como esses assuntos são tratadas é um mérito da diretora, que tem um olhar carinhoso para seus pais, mas não ameniza a complexidade - e as dores - que os conflitos familiares deixaram. Rachel também se coloca como personagem, mostra os bastidores da filmagem e deixa claro que, ali, também está um processo de conciliação da família com sua própria história.
Em um momento onde a liberação sexual dos LGBT ganhava força, mas ainda era alvo de perseguição, a Circus of Books foi um importante ponto de resistência. Com materiais eróticos, literatura, publicações específicas voltadas para a comunidade, a loja se tornou local de encontro entre semelhantes e um espaço seguro, especialmente para homens gays.
Paralelamente, o conservadorismo de alguns políticos e líderes que buscavam desviar de assuntos de fato importante para a sociedade pautava retrocessos e promovia uma caça às bruxas. Barry chegou a ser processado por comercializar materiais pornográficos (além da livraria, o casal também era sócio de uma empresa que produzia filmes eróticos).
Com a explosão da crise da AIDS, anos 1980, quando o terror e a exclusão fez com que vários homens gays fossem renegados pelo governo e por suas famílias, Barry e Karen, mesmo sem militarem pelo movimento, prestaram solidariedade aos seus funcionários e estiveram junto daqueles que pereceram diante da epidemia.
A dificuldade de Karen em aceitar a orientação sexual do filho, apesar da natureza de seu negócio, é um dos conflitos mais fortes do filme. Ali vê-se uma mulher atormentada pelas convenções sociais e religiosas, que a princípio não entende os preconceitos internalizados, mas que aos poucos tenta se desconstruir. Há dor no seu olhar e também no do filho, marcas que ainda permanecem, mas há também um desejo por transformação. Ela entra em um grupo de apoio a pessoas LGBT e seus parentes e se torna, de fato, uma militante. São emocionantes as cenas do casal na Parada da Diversidade de Los Angeles.
O longa acompanha também os últimos dias da Circus of Books, que há anos já apresentava declínio nas vendas por conta da ascensão da internet e dos aplicativos de relacionamento. Há uma dose de melancolia em ver aquele símbolo no apagar das luzes, mas também uma esperança ao perceber que tudo tem seu ciclo e a contribuição daquele espaço para tantas pessoas que não tinham onde vivenciar e aflorar sua sexualidade. E que pessoas comuns, às vezes totalmente sem querer, podem ser peças fundamentais de mudança - e de serem, também, transformadas para melhor no processo.