Nos últimos dias, o melodrama épico E o Vento Levou voltou a ser o centro de uma discussão sobre representações racistas do cinema norte-americano, debate que vem circundando o filme de 1939 desde seu lançamento. O título foi retirado do catálogo da HBO Max, serviço de streaming recém-inaugurado da Warner Bros, após algumas manifestações. Uma delas foi a do escritor John Ridley, autor de 12 Anos de Escravidão, responsável por uma publicação no jornal Los Angeles Times contra a presença do filme no serviço. Essa contestação ganha uma grande dimensão em meio ao levantes impulsionados por manifestações de cunho racial que tomam o país.
Em um comunicado, a plataforma afirmou que o filme era "um produto de seu tempo e contém alguns dos preconceitos étnicos e raciais que, infelizmente, têm sido comuns na sociedade americana. Estas representações racistas estavam erradas na época e estão erradas hoje, sentimos que manter esse título disponível sem uma explicação e uma denúncia dessas representações seria irresponsável". Ainda assim, o título alcançou o primeiro lugar na lista dos mais vendidos do site Amazon.
A empresa aponta que o filme retornará ao catálogo acompanhado de uma discussão sobre seu contexto histórico. O filme se passa no antes, durante e depois da Guerra da Secessão (1861-1865), sendo majoritariamente ambientada no sul escravocrata. Entre suas grandes problemáticas estão a representação estereotipada e esvaziada dos negros e a suavização da escravidão, em que seus principais flagelados são obedientes e felizes.
Não se engane, E o Vento Levou não é uma exceção, mas ganha os holofotes pela dimensão que teve na indústria. Sua escala é épica em sua direção, com quase quatro horas de filme, em suas premiações, com oito Oscar, além de ser a maior bilheteria da história quando reajustado os valores da inflação. Outro caso semelhante também aconteceu em uma outra gigante plataforma de streaming, mas teve menos visibilidade.
Quando a Disney+ chegou em novembro passado nos Estados Unidos, carregando basicamente a maior parte da produção de décadas da empresa, foi notada a ausência de A Canção do Sul (1946), pioneiro na interação entre atores reais e animação, mas ainda um seguidor das representações raciais problemáticas de Hollywood. A trama é conduzida por Tio Remus, um ex-escravo no período da reconstrução dos Estado Unidos, que conta histórias para um jovem garoto branco. O filme não deixa claro em que época se passa e a palavra escravidão nunca aparece.
Contudo, Remus olha com um certo saudosismo para seu passado, onde tudo era melhor. Passado esse que tudo indica que era o período de sua escravidão. Estereótipos, como os do modo de falar dos personagens negros, também estão presentes, além da subserviência alegre ao patronato branco . Sua não entrada no serviço de streaming também não foi uma grande surpresa, já que o filme não circula nos Estados Unidos desde 1986. Bob Iger, presidente executivo da empresa, garantiu que ele nunca estará no catálogo do Disney+.
Tanto E o Vento Levou, como A Canção do Sul trazem em seu elenco uma atriz que carrega em sua trajetória materializações das problemáticas apontadas: Hattie McDaniel, filha de ex-escravos. Pelo filme de 1939, ela se tornou a primeira atriz negra a vencer um Oscar e muito provavelmente a primeira a comparecer na cerimônia sem estar lá para fazer serviços. Na estreia do filme, na cidade de Atlanta, Hattie não tinha permissão para estar presente na exibição, com as leis de segregação estando vigentes e rígidas, em especial no sul.
A figura encarnada por McDaniel em E o Vento Levou, repetida também boa parte dos filmes de sua carreira é conhecida como Mammy, sendo inclusive é o nome de sua personagem. Trata-se de um antigo estereótipo racial imposto para mulheres negras. Geralmente são domésticas, que servem com felicidade a uma família branca, seja como escrava da casa ou serviçal nos anos pós-escravidão. Sua vida é basicamente a felicidade e o bem-estar dos patrões, geralmente sem carregar outros laços afetivos e sexuais. Fisicamente, costuma a ser representada por mulheres gordas e seus cabelos crespos são escondidos com um lenço. É a imagem da mulher negra com vocação apenas para servir.
Hoje, o debate sobre esses filmes parece sempre passar pela ideia de "olhar o contexto da época". Mas quão sustentada é essa afirmação quando observamos movimentações de seus próprios tempos questionando essas problemáticas? E o Vento Levou chegou a ser classificado como uma "arma de terror contra a América negra" e encadeou manifestações e publicações em jornais negros por todo o país. Intelectuais negros também apontaram o ataque da produção contra a comunidade afro-americana, assim como também o fez a atuante Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor. É um engano falar que o racismo presente desde a fundação do cinema dos Estados Unidos só veio ser contestado agora.
É só olhar para aquele que é considerado o fundador da linguagem narrativa clássica na história do cinema. O Nascimento de Uma Nação (1915), de D.W Griffith, juntou uma gama de elementos expressivos da linguagem, na montagem, na fotografia e na própria estrutura narrativa de forma pioneira, abrindo os caminhos para o desenvolvimento da forma clássica da sétima arte. Mas fez isso reafirmando as mais violentas representações do racismo, com pretos retratados em figuras violentas e ridicularizadas, interpretados por brancos sob a igualmente violenta maquiagem blackface. A cereja podre do bolo é o fôlego que o filme deu para uma nova fase da praga supremacista branca Ku Klux Klan, até então decadente, cujos seus integrantes são retratados como heróis na obra.
E já nesse começo do século, O Nascimento de Uma Nação foi amplamente contestado e apontado como racista, principalmente pela recém-fundada Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor, responsável também por críticas feitas contra E o Vento Levou. Em uma tentativa de responder essas acusações, Griffth lança no ano seguinte o épico Intolerância, a produção mais cara até então, um gasto de US$ 2,5 milhões para o diretor dizer que não era racista. O filme afundou nas bilheterias e é conhecido como um dos primeiros grandes fracassos comerciais da história.
Um homem negro de alto porte, forte e querido pelos próximos, está caído no chão, morto. Testemunhas ao redor não foram capazes de parar policiais fardados, brancos, de sufocar a vida para fora de seus pulmões. Seu falecimento rompe, mais uma vez, com uma cadeia de tensões acumuladas há 400 anos e a revolta se instaura. A fúria ganha corpo entre os seus, vidraças são quebradas, mas não tanto como o espírito daquela comunidade. Essa é uma descrição que cabe aos eventos recentes, com o assassinato de George Floyd, mas é também a descrição do clímax de Faça a Coisa Certa, do cineasta norte-americano negro Spike Lee, lançado em 1989 e um dos mais importantes de sua filmografia.
Spike Lee não estava fazendo um filme-profecia quando, há mais de 30 anos, encenou a morte de Radio Raheem (Bill Nunn). Era um diretor negro contando a história dos seus, a vida de sua comunidade, com suas especificidades de dores e afetos. Algo que o cinema em seus mais de 130 anos não deu muitas chances de realização. Enquanto indústria e mercado, populações à margem dificilmente puderam se envolver enquanto produtores. Então esteticamente, o resultado é que constantemente, a representação e a ideia do negro no cinema é pautada na alteridade, na figura e nas narrativas de um outro.
Ia ser assim, por exemplo, com a cinebiografia do ativista Malcolm X. A Warner Bros. era detentora dos direitos da autobiografia de X e convidou o canadense Norman Jewison, diretor branco que já havia dirigido No Calor da Noite, que tem o racismo como um de seus temas. A escolha foi duramente criticada por diversas vozes, entre elas o então proeminente Spike Lee, que ainda na faculdade já sonhava em fazer um filme sobre o grande ativista. Jewison entregou o cargo, que foi entregue a Lee, transformando a vida Malcolm X em um épico com mais de três horas.
Antes de Spike Lee, o cinema norte-americano contou com importantes movimentações de cineastas negras trazendo suas narrativas. O primeiro deles foi Oscar Micheaux, ainda no final dos anos 1910. Em 1919, faz sua estreia no cinema, adaptando seu romance The Homesteader, sobre um homem negro que se apaixona por uma mulher branca, mas renuncia seu amor por uma questão de “lealdade racial”. Foram mais de 40 filmes, muitos apresentando uma tônica socialmente engajada. Em 1920, dirige Within our Gates, considerado uma resposta ao Nascimento de Uma Nação.
Já no começo dos anos 1970, Melvin Van Peebles dirige Sweet Sweetback Baadasssss Song, inaugurando um novo momento que seriam conhecido como Blaxploitation, um verdadeiro cinema de gênero, prevalecendo tramas policiais e de ação, de forma afrocentrada, integrando também diversos elementos do ethos da cultura negra, como a música e a moda. Essa safra vem com produções ainda marcantes no imaginário da comunidade negra, como Shaft, Superfly e Cleopatra Jones, com heróis e heroínas que ocupam posições do policial ao cafetão. Essa última, assim como algumas outras representações no gênero, também passaram por críticas e problematizações, com a produção minguando na mesma década.
Também nos anos 70, eclode uma outro momento importante no cinema afro-americano, desta vez encabeçada por estudantes universitários negros da Universidade da Cidade de Los Angeles (UCLA). A movimentação, batizada de L.A Rebellion, é influenciada por outras importantes movimentações no mundo, como o neorrealismo italiano e a produção na América Latina e África. Nomes como Charles Burnett, Julie Dash e Haile Gerima produziram filmes diversos entre si, mas interessados na construção de um cinema muitas vezes naturalista sob a perspectiva de um realizador negro, contemplando temas desde a ancestralidade africana aos movimentos de emancipação, assim também como a cultura da comunidade.
Já ali pelos anos 1980 e 1990, vão despontar figuras como John Singleton e F. Gary Grey, trabalhando em obras com apelo popular e conseguindo trilhar caminhos para dentro do cinema blockbuster - ambos dirigiram filmes da franquia Velozes e Furiosos, por exemplo. Já em 2016, a cineasta Ava DuVernay assume a direção de Uma Dobra no Tempo, da Disney e se torna a primeira mulher negra a dirigir um filme com mais de US$ 100 milhões de orçamento. Ao saber da notícia "Não sou a primeira mulher negra capaz (de dirigir um blockbuster). Não mesmo".
Seu filme anterior, Selma, sobre a histórica marcha comandada por Martin Luther King em prol dos direitos eleitorais da população negra nos anos 1960, foi indicado ao Oscar de melhor filme. Ela ainda dirigiu algumas outras obras engajadas e de grande alcance, como o documentário A 13ª Emenda e a série Olhos que Condenam, ambos produzidos pela Netflix. Já Spike Lee tem seu próximo filme estreando nesta sexta-feira (12), Destacamento 5, também na Netflix.