O tempo é de pluralidade e de quebra de paradigmas, não adianta querer negar ou voltar atrás. Movimentos crescentes, liderados por minorias historicamente invisibilidades, vêm ganhando espaço no campo cultural e mostrando a urgente necessidade de ressignificar padrões comportamentais e estéticos seculares. Na literatura não é diferente: clubes de leituras, editoras e projetos popularizados através das redes sociais apontam a imensa lacuna no mercado tradicional de publicações de autoras e autores negros.
Uma pesquisa do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília (UnB) vem colhendo informações dos romances publicados pelas maiores editoras brasileiras desde 2003 com o objetivo de traçar o perfil do romancista e do romance nacional. E os números não negam a realidade do racismo estrutural do país.
Os resultados mais recentes são da segunda fase da pesquisa, divulgada em 2018, que analisou livros lançados entre 2005 e 2014 e não diferem muitos daquelas colhidos na análise de romances lançados entre 1990 e 2004, na primeira fase da pesquisa. Apenas 2,5% dos autores são não-brancos e 6,3% dos personagens são declaradamente negros, 6,9% mestiços e apenas 1,1% indígena, contra 77,9% de personagens brancos.
Dados que, infelizmente, não surpreendem quem está a par da dinâmica das relações raciais na sociedade brasileira, mas que contradizem os resultados do último censo realizado pelo IBGE em 2018, em que cerca de 55% da população se declarou como não branca (pretos e pardos).
A falta de representatividade negra por si só não é o único problema na produção literária. Historicamente, assim como em outras tantas linguagens artísticas, personagens negros foram estereotipados. Pobre e criminosos quando homens, donas de casa ou personagens extremamente sexualizadas quando mulheres. “É a mulher que existe na narrativa para satisfazer os desejos dos homens, sempre muito provocadora, mas nunca a mulher com quem eles casam”, avalia a doutoranda em Teoria Literária pela UFPE, Adriana Minervina da Silva.
Atualmente ela analisa a construção da subjetividade feminina na obra Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, mas há anos se dedica a pesquisar a representação da mulher negra na literatura brasileira. “É muito importante termos autoras e autores negros que publicam e trazem protagonistas negros em suas obras”, afirma. Para Adriana, é preciso ainda que escritores negros do passado que nunca tiveram sua obra legitimada sejam agora redescobertos e publicados. “É um debate que vai muito da discussão do que é uma obra canônica.”
A expectativa para muitos leitores e profissionais do livro é que as iniciativas mais recentes de valorização de autores negros, potencializadas após 2014, reflitam na próxima fase da pesquisa da UnB. Mas, independentemente de dados, há uma percepção empírica de mudança gradual que vem acontecendo por fora das grandes editoras, no mercado mais independente do setor literário, como é o caso da editora Malê.
Fundada no Rio de Janeiro em 2016, a Malê publica autores negros brasileiros e de outros países, como Angola, Moçambique, Senegal e República do Congo, tanto de literatura infantil, juvenil quanto adulta. Vagner Amaro, co-fundador e editor, avalia como o crescimento da Malê pode refletir positivamente nos catálogos de outras editoras. “Em menos de um ano, por exemplo, colocamos no mercado três títulos da escritora Conceição Evaristo. Em um mesmo período em que houve uma ampliação da visibilidade da escritora, isso dá sinais para o mercado. A mudança ainda que tímida, não se deu como uma forma de atender às reivindicações dos autores negros, ela se deu porque a partir do trabalho de editoras como a Malê, outras editoras médias e maiores passaram a dar mais atenção para estes autores”, reflete.
Um ponto de convergência entre iniciativas como a pesquisa de Adriana, a Malê e todos os outros necessários movimentos de valorização de autores negros pode ser traçado a partir do termo “escrevivência”, desenvolvido pela própria Conceição Evaristo. A palavra é usada para denominar uma escrita que nasce da vivência do cotidiano e da memória dos próprios escritores e que se comunica com a vida de tantos leitores. Uma perspectiva individual que carrega simbolismos, dores e sonhos universais.
Para Vagner, esse conceito entretanto se desvencilha do que se entende por autoficção. “Ele dialoga com o conceito de literatura negro-brasileira. Acho renovador, uma vez que as narrativas da literatura brasileira estiveram por muito tempo fortemente ‘umbilica is’. Talvez no futuro pesquisadores vão colocar escrevivência em diálogo com os estudos culturais e com as relações entre pós-colonialismo e literatura, ou até, já estejam fazendo isso”, aponta.
Além de publicar livros, a Malê também atua como agenciadora literária, possui um canal no YouTube, uma revista digital gratuita e um prêmio anual. A última edição, de 2019, contemplou quatro categorias e uma delas - Jovens escritor@s negr@s: Conto e Crônica - foi vencida pela pernambucana Bell Puã com o livro Mama Áfica é Mar Solteira, que será lançado este ano.
Conhecida por fazer parte do Slam das Minas de Pernambuco e por ter representado o Brasil em uma competição internacional de slam na França, ela passou da poesia oral para a escrita de forma muito natural. “Minha experiência na literatura começou, claro, antes de tudo como leitora. Como escritora foi primeiro através do slam, eu nem pensava em publicar, mas tive grandes oportunidades e os caminhos foram se abrindo”, lembra.
Na sua formação de leitora durante a adolescência, autores negros não eram maioria das referências. Mas durante seu processo de identificação como mulher negra, Bell passou a também procurar mais leituras representativas e traz hoje temáticas relacionadas a questões de gênero e raça em sua produção. “Eu consigo falar de muitas coisas, de tudo que eu quiser falar. Mas sem dúvidas esses temas estão comigo, mesmo que de maneira subjetiva. Estão comigo da melhor e da pior forma possível e é importante que eu fale sobre eles sempre que possível”, avalia.
Na busca por livros escritos por autores negros, muitos leitores procuram blogs, perfis nas redes sociais ou “booktubers” cujo foco seja justamente este. A baiana Maria Ferreira é, além de graduada em Letras, dona do perfil do Instagram e do blog Impressões de Maria, que mantém desde 2013, quando estava no último ano do Ensino Médio. Inicialmente, ela resenhava livros sem recorte definido, mas com o passar dos anos suas leituras acompanharam seu próprio processo de amadurecimento enquanto mulher negra.
“Acredito que o trabalho desenvolvido pelos blogs e canais literários ajudam a dar mais visibilidade e fazer com que mais pessoas conheçam e se interessem por essas obras”, diz. Através do perfil na rede social, Maria criou uma rede de leitores interessados em ampliar seus repertórios a partir de sua curadoria e resenhas.
“Diante do atual cenário sociopolítico, a busca por livros que abordem a temática do racismo e desigualdade de gênero é um caminho para que haja mudanças estruturais. Só a partir do momento que se entende o funcionamento do sistema, é que se pode alterar esse sistema, essa estrutura, principalmente sabendo qual lugar ocupamos nessa realidade", conclui Maria.