Jup do Bairro brilha no complexo e pungente EP 'Corpo Sem Juízo'

Trabalho da cantora paulista conta com participações de Deize Tigrona, Linn da Quebrada e Bad Sista
Márcio Bastos
Publicado em 12/06/2020 às 14:00
JUP DO BAIRRO Artista articula questões ligadas à gênero, raça e sexualidade em sua música Foto: Divulgação


Criar a partir de sua própria existência, compreendendo-se como alguém em constante construção/transformação, é um pilar fundamental na obra de Jup do Bairro. Esse mergulho na própria subjetividade e a observação das dinâmicas sociais que atravessam suas experiências estão impressos em seu excelente EP de estreia, o recém-lançado Corpo Sem Juízo


A ideia do corpo sem juízo que dá título ao EP (e a uma faixa lançada por ela em 2019 e apresentada no novo trabalho em uma versão a capella) é um manifesto contra a cisgeneridade e heterossexualidade compulsória; o machismo e o racismo estrutural. Sua vivência enquanto mulher trans, negra, periférica e gorda tensiona na prática as teorias sobre sobre gênero, sexualidade e raça. 

"O que pode um corpo sem juízo? Quando saber que o corpo abjeto se torna um corpo objeto e vice-versa? Não somos definidos pela natureza assim que nascemos, mas pela cultura que criamos e somos criados. Sexualidade e gênero são campos abertos das nossas personalidades e preenchemos conforme absorvemos elementos do mundo ao redor. Nos tornamos mulheres, ou homens. Não nascemos nada; talvez nem humanos nascemos. Sob a cultura, a ação do tempo, do espaço, história, geografia, psicologia, antropologia, nos tornamos algo. Homens, mulheres, transgêneros, cisgêneros; heterossexuais, homossexuais, bissexuais e o que mais quisermos, pudermos ou nos dispusermos a ser. O que pode seu corpo?", indaga Jup no trabalho.

Com direção de Bad Sista, com quem Jup apresentou o projeto Bad do Bairro do Rec-Beat, durante o Carnaval do Recife deste ano, Corpo Sem Juízo é um trabalho enxuto, de apenas sete faixas e 27 minutos, e mas complexo. A voz grave e rica da cantora captura emoções que vão da dor ao êxtase, da fragilidade à força hercúlea de quem precisa lutar diariamente pela sua existência. Em termos sonoros, é um caldeirão de referências, de alguém que ouve sem hierarquia ou proselitismo de Sampa Crew à Bjork. 

Transgressão, faixa que abre o EP, é um exemplo desse desnudamento emocional da artista. A produção eletrônica minimalista cresce ao longo da canção, em diálogo com a jornada de autoconhecimento, de alguém que tem "um corpo que transita e me faz enxergar", cantada por ela. "Me deixa voar", entoa. 

Na excelente Pelo Amor de Deize, parceria com Deize Tigrona, uma das pioneiras do funk no Brasil, Jup do Bairro cria um mantra de superação e resiliência, tendo como base as experiências de ambas enquanto mulheres negras, que começa como um heavy metal e se transfigura em um emocionante momento de sororidade. All You Need Is Love, com participações de Rico Dalasam e Linn da Quebrada (com quem Jup apresenta o programa Transmissão no Canal Brasil), é um hino de luxúria e hedonismo, que, como todas as canções do trabalho, passeia por diferentes emoções e estilos musicais - mesclando funk e experimentalismos eletrônicos. 

Na tradição de relato direto e interseccional do hip hop, a artista compartilha sua jornada desde a infância na pungente O Corre. "Fui crescendo e entendendo a missão/ Sem pai, tive que cuidar da mãe e irmão/ Passando mal com a revistinha da Avon/ Querendo um trocado para comprar perfume e batom/ Na escola, pensei que era o meu momento, mas foi só dó, ré, mi, fa, só lamento/ E eu era CDF, sentava lá na frente/ Era bichinha e era crente, cê entende?", compartilha.

Em Luta Por Mim, Jup e o rapper paulista Mulambo denunciam o racismo sobre o qual está alicerçada a sociedade brasileira. "Nunca nem me ouviram, mesmo que eu gritasse/ Mas agora que eu virei estatística, vocês vão usar meu nome e imagem para pedir pelo fim da polícia/ Se eu morresse hoje, amanhã era notícia (...) Virei postagem na sua rede social/ Você lamentou, escreveu sobre a repressão policial/ Sua hashtag foi o ponto final/ Dizer 'Vidas Negras Importam' para você isso foi o diferencial", explicita Mulambo.

Ao colocar sua subjetividade e todas as questões que atravessam sua vivência, a artista entrega uma obra que reforça um movimento de mulheres trans crescente e pulsante na música brasileira, amparado por artistas como ela, Linn da Quebrada, Liniker, Majur, entre outras. Uma oposição ferrenha à necropolítica praticada contra as minorias sociais no Brasil, a poética da cantora e compositora paulistana não faz concessões, não se limita e se entende como um trabalho em progresso, como a própria Jup. 

TAGS
cultura música entretenimento
Veja também
últimas
Mais Lidas
Webstory