Na madrugada de 3 de março de 1963 um homem caiu da varanda do terceiro andar de um prédio da Cinelândia, bairro do Centro do Rio de Janeiro. Era José Nogueira, jornalista cearense de 29 anos que também atuava como agente duplo de espionagem entre um órgão federal e uma CPI que investigava financiamentos irregulares em campanhas políticas.
Quarenta e sete anos depois, em 2010, quando há muito já havia-se esquecido de Nogueira e das circunstâncias duvidosas da sua morte, o carioca Raphael Alberti, então estudante de História na UFRJ, se deparou com este caso e iniciou uma exaustiva pesquisa a respeito. Mais dez anos se passam e Raphael - agora morando em Caruaru, onde atua como professor - terminou de escrever seu primeiro livro, intitulado Um Espião Silenciado (137 pgs., R$ 9 o e-book), em que se propôs a contar a história de José Nogueira, preenchendo uma lacuna da historiografia política brasileira. A obra está sendo lançada hoje pela Cepe Editora, de forma virtual com uma conversa entre o autor e o editor Diogo Guedes, a partir das 17h30 no canal de YouTube da Cepe.
A vida e a atuação profissional de Nogueira foram curtas mas bastante intensas. Nascido no início da década de 1930 em Mundaú, cidade litorânea cearense, ele se mudou para o Rio de Janeiro quando tinha aproximadamente 18 anos. Atuou primeiro como reservista da Aeronáutica para, em seguida, seguir carreira no jornalismo. Foi ele, por exemplo, quem tornou pública a existência da Ordem Suprema dos Mantos Negros, conhecida como a "Klu Klux Klan brasileira".
Nogueira transitava com muita naturalidade entre diversos ambientes políticos e foi essa sua personalidade sedutora que o levou a exercer as funções de agente secreto do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) ao mesmo tempo em que era informante do deputado Eloy Dutra em uma CPI que investigava a atuação da Embaixada dos Estados Unidos e de grandes multinacionais no financiamento de campanhas políticas no ano de 1962 para partidos de direita, a CPI do Ibad-Ipes.
Do ponto de vista das relações e políticas internacionais, o mundo vivia em pleno período da Guerra Fria e os Estados Unidos teimava que o Brasil se aproximasse dos países comunistas. Este contexto macro é indissociável do que acontecia internamente e de como diversos fatores conduziram figuras políticas a articular o Golpe Militar de 1964.
Para situar o leitor do que foi de fato a CPI do Ibad-Ipes, como as últimas eleições democráticas antes do período da ditadura militar ocorreram e quem era as pessoas envolvidas na vida de José Nogueira, personagem central da trama de Um Espião Silenciado, Raphael lança mão de uma grande introdução ao cenário político brasileiro do início da década de 60 e de um índice com todas as siglas das instituições abordadas no livro.
Na segunda parte da obra é que o leitor é de fato apresentado a Nogueira, a partir de uma reconstituição dos momentos que marcaram a véspera de sua morte e de detalhes sobre a condução das investigações. Vale também ressaltar que o jornalista passou 10 dias internado antes de morrer e que, ao longo desses dias, não houve muito esforço por parte da polícia, mesmo com a insistência de seu irmão em levantar a hipótese do assassinato.
Para além de uma exposição dos fatos, o autor se coloca como um dos envolvidos na busca por respostas sobre a morte de José Nogueira, levantando até suspeitos de envolvimento. Tanto que a terceira parte da obra é justamente uma conversa com os leitores a respeito do processo de pesquisa, das imensas dificuldades de acessar certos documentos, de como conseguiu, no final de 2019, viajar até a cidade natal de Nogueira e entrar em contato com parte da família.
"Achei importante escrever também sobre a busca documental e o que não consegui encontrar. Porque assim como o silêncio revela muito em uma conversa, todas as dificuldade e resistências que encontrei mesmo com a Lei de Acesso à Informação dizem muito sobre nosso processo político", conta Raphael.
"Me deparei pela primeira com o caso José Nogueira em 2010, fazendo minhas buscas para meu TCC, que foi sobre a CPI do Ibad-Ipes. Em um dos parágrafos dos atos encontrei a fala de um jornalista que estava denunciando um possível assassinato e isso me chamou muita atenção. Essa busca pela verdade acerca da morte de Nogueira se tornou algo de peso na minha vida, mas com altos e baixos, não passei 10 anos ininterruptos pesquisando. Até porque não tive nenhum tipo de incentivo financeiro, nenhuma bolsa nem durante o mestrado. Mas, com meus próprios recursos e ajuda da família, consegui viajar para Brasília para olhar o arquivo que tem na UnB sobre Carlos Lacerda, um dos possíveis envolvidos no caso, e depois para o Ceará."
Com tantos problemas na busca documental, ele até entrou com um mandado de segurança contra a Polícia Civil, em 2017, pelo que considerou ter sido abuso de autoridade. No ano seguinte, o Ministério Público deu parecer favorável ao pedido em primeira e segunda instância.
"E mesmo assim não tive acesso ao laudo cadavérico de José Nogueira. Mas não considero isso como uma derrota, dei o meu melhor, não desisti da pesquisa e quero poder contribuir ao mostrar o quanto é preciso lutar para ter acesso a documentos que são nossos, da sociedade."
Como bem aponta o jornalista e escritor Eumano Silva, autor de Operação Araguaia: Os Arquivos Secretos da Guerrilha, no prefácio do livro: a obra de Alberti "cumpre com méritos o papel de resgatar fatos esquecidos e documentos inéditos sobre as ações" da derrubada do presidente João Goulart. A partir da morte de um personagem tido como secundário, Alberti buscou então trazer à tona alguns dos tantos imbróglios da trama dos interesses políticos das vésperas do Golpe Militar. Ele pretende ainda leva o projeto adiante, mas em outro formato, pois junto com o roteirista carioca Vitor Garcia, ele está trabalhando em um roteiro de cinema. A dupla está inclusive à procura de produtores.
Chama também a atenção a dedicatória do livro, "para o paraquedista Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, vulgo 'Sérgio Macaco', que se recusou a jogar uma bomba no Gasômetro do Rio, em 1968, salvando aproximadamente 100 mil pessoas, e que foi injustamente esquecido pela História." Sérgio Macaco não tem, entretanto, nenhuma relação com José Nogueira.
"Mas foi uma pessoa que morreu no ostracismo, mais uma. Estamos neste momento de discutir a derrubada de estátuas e ele é uma pessoa que de fato mereceria ser homenageado com uma estátua. Só que ninguém conhece esse nome e isso diz muito sobre nossa história e do que sabemos sobre as figuras brasileiras que tiveram coragem de confrontar as forças da lei", pontua Raphael.