Nascia Carolina, a autora

VITÓRIA Há 60 anos, Carolina Maria de Jesus tinha nas mãos a primeira tiragem do seu livro de estreia: Quarto de Despejo. Sonho feito
Adriana Guarda
Publicado em 23/08/2020 às 6:00
ADMIRAÇÃO Clarice Lispector foi prestigiar o lançamento de Carolina Foto: DIVULGAÇÃO


Naquele sábado, Carolina esperava ansiosa a chegada do jornalista Audálio Dantas à favela do Canindé. Conversava com uma vizinha no quintal, quando sua filha Vera Eunice gritou: "Olha o Audálio!" Ela correu para dentro de casa. O repórter carregava um pacote. Sem disfarçar a alegria, abriu o embrulho e entregou-lhe um livro. Ela pousou os olhos sobre o exemplar por alguns segundos e disse:

— O que eu sempre invejei nos livros foi o nome do autor.

Leu seu nome na capa e se emocionou:

— Carolina Maria de Jesus — Quarto de Despejo — Diário de uma Favelada. É preciso gostar de livros para sentir o que estou sentindo.

Era 13 de agosto de 1960 e o momento ficaria marcado como um dos mais felizes da vida da escritora. Aquelas 173 páginas, publicadas pela Editora Francisco Alves e ilustradas pelo artista Cyro Del Nero, carregavam muitos significados. Era a materialização do sonho de uma mulher negra, pobre, mãe solteira e pouco escolarizada, que se encantou pelo universo das letras e usou o poder das palavras como arma para a sobrevivência. Quarto de Despejo é uma edição, feita por Audálio, dos muitos diários de Carolina, descrevendo o dia-a-dia da favela do Canindé, em São Paulo, entre 1955 e 1960.

Dias depois daquele encontro com Audálio, ela estaria distribuindo autógrafos no lançamento de Quarto de Despejo. Na última quarta-feira (19), comemoraram-se-se 60 anos da aparição da obra, que estourou na cena cultural brasileira e virou best-seller, traduzida em 17 línguas e distribuída em 46 países. A data foi celebrada com lives, cursos sobre a obra da escritora e anúncios de exposições e lançamentos de uma Carolina ainda inexplorada, com seus romances, poemas, peças e provérbios (leia matéria na página 2).

TRAJETÓRIA

Carolina nasceu na pequena cidade de Sacramento, no interior de Minas Gerais. Filha de descendente de escravizados e de uma relação da mãe fora do casamento. Não conheceu o pai. Estudou menos de dois anos na escola espírita Allan Kardec e despertou para o mundo das letras. Foi para São Paulo em 1937, mas não se adaptou à vida como empregada doméstica. Chegou a morar na rua até ser 'despejada' na favela do Canindé. Virou catadora por obrigação e escritora por vocação. Todos os dias quando se levantava precisava sair para catar papel e vender para comer e alimentar os filhos João, José Carlos e Vera Eunice.

Carolina escrevia como um desabafo, mas desprezava o silenciamento. Ela não queira que seus cadernos ficassem empoeirando e mofando dentro de um barraco úmido. Seu objetivo sempre foi publicar. Chegou a percorrer as redações de jornais com seus escritos e emplacou algumas coisas. Também enviou manuscritos pelos Correios para a revista Seleções, nos Estados Unidos, mas ficou muito decepcionada quando recebeu o material de volta, com uma negativa de interesse na publicação.

O encontro com Audálio Dantas foi que permitiu sua aparição pública. Essa história é bastante conhecida. Ele estava fazendo uma reportagem especial para a Folha da Noite na favela do Canindé, em São Paulo, quando encontrou Carolina brigando com uns homens, porque eles estavam brincando no parquinho das crianças. Na discussão, ameaçava colocar os nomes dos 'vagabundos' no seu livro. Audálio ficou curioso e perguntou que livro era esse. Acompanhou Carolina até o barraco e viu os cadernos.

A partir dali, o repórter percebeu que não precisava mais escrever a matéria porque a própria mulher já tinha escrito com muito mais verdade. Ele levou os cadernos para a redação e sugeriu ao editor escrever apenas uma apresentação e publicar partes do diário. Depois dessa publicação, a imprensa toda começou a procurar Carolina. Em 1959, Audálio publicou reportagem na revista (O Cruzeiro), principal semanário da época, com o título: "Retrato da favela no diário de Carolina". Um ano depois saiu o livro.

SUCESSO ESTRONDOSO

O dia do lançamento foi um sucesso. A Editora Francisco Alves colocou um cartaz enorme na frente da livraria. A decoração da vitrine simulava a favela do Canindé. Muitos jornalistas compareceram. Clarice Lispector esteve lá. Carolina apresentou Clarice a Vera Eunice dizendo:

— Olha, ela é uma escritora de verdade.

Clarice respondeu em tom elogioso.

— E você é uma escritora que escreve a realidade.

Carolina ficou autografando até a livraria fechar.

A partir daquele dia, Carolina estava na recém-criada televisão, nos jornais, nas revistas, recebendo propostas para publicar o livro em outras línguas e convites para publicação do Quarto de Despejo em outras cidades.

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