De assunto tido por muitos anos como algo distante dos brasileiros a um fenômeno social que vem pautando o debate público, as discussões políticas e reverberando na produção cultural, a imigração é um tema que precisa ser tratado com sensibilidade e urgência. Afinal, entre 2010 e 2018, cerca de 774 mil estrangeiros desembarcaram no Brasil precisando de uma nova morada. Refugiados de países em guerra, abalados por grandes crises econômicas, ou pessoas perseguidas por serem quem são em sociedades ainda extremamente intolerantes, são diversos os motivos que resultam na imigração.
A moçambicana Lara Lopes, por exemplo, precisou sair de seu país aos 29 anos por não conseguir viver plenamente sua homossexualidade. Já Abdulbaset Jarour, jovem sírio, chegou fugido dos horrores da guerra em que participou como motorista do serviço militar obrigatório.
E Yennifer Zarate, venezuelana que perdeu o filho em decorrência da negligência do sistema público de saúde, veio ao Brasil apenas com a roupa do corpo, sem avisar a ninguém, necessitada de esperança. Ou ainda Allaye Gana, malinês da civilização Dogon, universitário militante da resistência, que foi abandonado no Rio de Janeiro por seu chefe, sem documentos.
Estas e mais 15 histórias são contadas com detalhes no livro ilustrado Valentes - Histórias de Pessoas Refugiadas no Brasil (296 pgs., R$ 39,90 o e-book e R$ 79,90 o livro físico), que acaba de ser lançado pela editora Seguinte com apoio do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Escrito a quatro mãos pelas jornalistas Aryane Cararo e Duda Porto de Souza - que juntas já publicaram Extraordinárias - Mulheres que Revolucionaram o Brasil (Seguinte, 2017) -, o livro é um precioso documento histórico, cultural e sociológico do nosso tempo.
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Os perfis transbordam emoção e revelam o olhar solidário de Aryane e Duda, mas passam longe de uma comoção passiva. Lara, Abdulbaset, Yennifer e todos os outros refugiados retratados no livro são protagonistas, retomando o controle de suas próprias narrativas após tantos anos de adversidades e desterro. Histórias que impressionam e provocam reflexões acerca da intolerância religiosa e sede de poder dos governantes acima de qualquer vida humana. Mas também que revelam a incrível capacidade de resiliência destes personagens.
Valentes traz ainda informações e dados atualizados reunidos em uma robusta apresentação. Desde os porquês da importância deste tema às diferenças entre os conceitos de migrante, apátrida e refugiado, passando por um detalhado histórico do refúgio no Brasil. Principais causas de estrangeiros pedirem abrigo por aqui, como a legislação encara o assunto, de que maneiras as associações atuam, como é possível ajudar, gráficos e até um glossário, ao final do livro, com os termos mais recorrentes.
"Foram dois e anos e meio de produção. Com o Extraordinárias a gente se inseriu neste arco narrativo dos Direitos Humanos falando de feminismo, mas de uma maneira transversal, pois tratamos também indiretamente de desigualdade racial, social, de sexualidade, através das histórias daquelas mulheres. Desta vez queríamos que o livro fosse além do perfis individuais, que abrangesse também a questão macro. Por isso escolhemos traçar um panorama brasileiro em relação à imigração e ao refúgio e explicar a situação de cada país de onde vieram os imigrantes e refugiados retratadas. Estamos falando de pessoas que estão ou estiveram em situações de enorme vulnerabilidade ao chegar ao Brasil", aponta Aryane Cararo.
Os capítulos são divididos por continentes e países: Ásia (Vietnã, Síria, Palestina, Afeganistão), África (Marrocos, República Democrática do Congo, Angola, Mali, Moçambique), Europa (ex-Iogoslávia) e América Latina (Venezuela, Bolívia, Colômbia, Paraguai, Haiti, Cuba). Cada um deles vem acompanhado de um prefácio intitulado Entenda a Crise, uma síntese escrita e ilustrada com mapas e gráficos sobre os principais acontecimentos que acarretaram na instabilidade sociopolítica do país e, consequentemente, no fluxo migratório.
"Começamos as entrevistas a partir de contatos com as associações voltada para refugiados. Foram vários encontros em momentos distintos com todos eles. Cada vez que íamos entregar os textos, voltávamos para saber como eles estavam. É um livro contemporâneo que fala da vida das pessoas, então não dava para fechar e apenas entregar", lembra a coautora.
"Quando a pandemia do Coronavírus chegou ao Brasil, Valentes já estava em uma etapa bem avançada, questões finais de ilustrações e revisão. Mas tudo mudou, precisávamos incluir essa questão também, o mundo já estava mudando. As migrações diminuíram nos últimos meses devido ao Covid-19, mas imagine as crises que vão se abater em breve sobre certos países. Grandes misérias, falta de alimentos... Tudo isso gera novos grandes deslocamentos. Precisamos pensar e falar sobre esse futuro."
Brasil, país acolhedor?
As trajetórias profissionais de Aryane e Duda enquanto jornalistas levaram-as a exercer um senso crítico em relação às fake news. Por isso algumas das falsas ideias mais recorrentes sobre refugiados e imigrantes são combatidas, como "eles roubam o trabalho dos brasileiros", "refugiados são criminosos" ou "eles não são qualificados", só para citar algumas.
Perceber como os brasileiros vêm recebendo esses estrangeiros e quais as políticas públicas existentes provoca outro questionamento bastante incômodo, mesmo que necessário: o Brasil é mesmo um país acolhedor, que recebe todos com alegria e inclusão?
É curioso perceber que vários dos refugiados escolheram o Brasil porque viram novelas e acreditaram que a solidariedade e tolerância com a diversidade retratadas na ficção representavam de fato o país. "Não podemos esquecer do imenso peso que possuem os meios de comunicação. Lara Lopes, por exemplo, achou que o Brasil era um país bacana para se viver porque viu uma relação lésbica bem aceita pelas famílias em Senhora do Destino. Na nossa última entrevista com ela, sua interpretação do Brasil era completamente diferente, já não acha que seja um bom país para a comunidade LGBTQIA+", lembra Aryane.
"Precisamos usar os meios culturais então para falar sobre o refúgio e imigração, tem o exemplo de uma novela recente da Globo, Órfãos da Terra, na qual alguns dos nossos entrevistados participaram até atuando ou como consultores. Precisamos disso pois quem está no poder público não tem contribuído muito para o debate."
Sobre esta visão globalizada do Brasil como um local extremamente acolhedor, Aryane Cararo ainda aponta para a origem colonial desta ideia, assim como o mito da democracia racial. "Quando o Brasil se liberta da colonização é preciso construir uma identidade para o país, uma cara brasileira. Então existiu esse trabalho de construção da imagem pacífica, da falsa igualdade, querendo colocar todos na mesma vala, mas mantendo sempre as hierarquias de poder."
É possível sentir pelos relatos o quão difícil é, para alguém de fora, conseguir se recolocar no mercado de trabalho, validar o diploma (o custo é altíssimo), se sentir parte de uma comunidade, dominar a língua. Para as crianças também é difícil receber pleno acolhimento nas escolas. Mas ainda há tempo de reverter a situação, criar novas oportunidades e integrar brasileiros e refugiados. "Toda história importa e estamos todos conectados. Ou todo mundo se salva ou morremos todos. E essa pandemia está revelando isso tudo ainda mais", finaliza Aryane.