SILÊNCIO DOS CLARINS

Troças, clubes e agremiações lamentam as dores de um ano sem Carnaval

Organizações buscam alternativas para lidar com o momento atípico. Novas regras para as lives também alteraram a rota prevista

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Nathália Pereira

Publicado em 13/02/2021 às 7:00 | Atualizado em 17/02/2021 às 20:00
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A ausência de ruídos nunca foi tão dolorosa aos pernambucanos. Em um Sábado de Zé Pereira comum, foliões já estariam tomando as ruas do Centro do Recife e as ladeiras da Cidade Alta de Olinda, misturando um sem-número de fantasias ao calor do verão litorâneo, batuques, caboclos e suas lanças, com muita gente tirando diversão do trabalho pesado que a época também traz. Mas não em 2021. Com a festa suspensa, troças, clubes e agremiações amargam 365 dias de saudade, somados a incertezas e adaptações ao momento de pandemia, fase mais adversa de suas trajetórias.

As novas regras de cuidado para o período, anunciadas pelo Governo do Estado na última quarta-feira (10), mexeram também com a realização das lives, alternativa, até então, adotada por vários dos principais blocos. Pela determinação, as transmissões podem reunir, no máximo, dez pessoas, o que torna praticamente inviável a presença das orquestras de frevo, estrelas principais dos cortejos. O Homem da Meia Noite, por exemplo, trocou a #LivedoCaluga pelo #EspecialdoCalunga, gravado na quinta-feira, em comemoração aos 89 anos da alegoria. O conteúdo estará disponível no canal youtube.com/HomemdaMeiaNoiteOficial, às 23h de hoje.

"Pensando exclusivamente na vida das pessoas, pois o momento exige prudência e responsabilidade, e em respeito aos apaixonados pelo Calunga, foi gravado um especial feito com muito carinho para vocês", diz a nota emitida pelas redes sociais.

O Galo da Madrugada optou pelo mesmo modelo e transmite, a partir das 9h deste sábado - horário oficial do início do desfile, no youtube.com/galorecife, o Especial do Galo, com atrações surpresa. "O Galo vai fazer 43 anos e essa é a primeira vez que existe um fato para adiar o nosso desfile e também o Carnaval de Pernambuco. Espero que isso nunca mais venha ocorrer", comenta o presidente, Rômulo Meneses.

Nas redes do bloco, a campanha #OGiganteDesfilanoMeuCoração tem pedido aos foliões que enviem memórias afetivas de seus carnavais. Registros de nomes conhecidos, como Geraldo Mattos, o Geraldo da Burrinha, além de resgates, como o vídeo de uma reportagem de 1978, em que o repórter Francisco José mostra a primeira saída do Gigante, já foram compartilhados. Neste último, Enéas Freire, fundador e idealizador, e a carnavalesca Badia são entrevistados.

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LIVES CANCELADAS

Nem todo mundo, porém, conseguiu se adaptar a tempo. A Live Encarnada, do Elefante de Olinda, aconteceria amanhã, em um sítio distante da Cidade Histórica, com a Orquestra do Maestro Oséas e a cantora Surama Ramos, mas foi cancelada. "Fomos pegos de surpresa", afirma Célio Gouveia, dirigente do clube.

"Nosso maior objetivo era gerar receita para ajudar os músicos, que não estão tendo tanto auxílio, além de manter a tradição. O Elefante completou 69 anos ontem, e nunca havia deixado de desfilar no domingo. É correto o protocolo para que não haja aglomeração, mas acreditamos que deveria ter existido um diálogo anterior conosco", pontua.

O clube está vendendo camisetas, ilustradas com uma arte criada por Julio Klenker a partir de versos de Edgard Moraes. O valor obtido será destinado ao pagamento dos trabalhadores e trabalhadoras do Carnaval em dificuldades financeiras. Pontos de venda e valores estão no perfil @elefantedeolinda, no Instagram.

A Pitombeira dos Quatro Cantos foi mais uma a desistir de sua live. O aniversário de 74 anos da turma amarela e preta, este ano, cai exatamente na despedida de Momo, a Quarta-Feira de Cinzas. Sem festa na rua, a organização planejou entrar ao vivo no canal da troça nesta data, mas anunciou, ontem, que não vai ser possível.

"Estamos há praticamente um ano sem rendimentos", conta o presidente da Pitombeira, Hermes Neto. "Fizemos camisetas e canecas para que, com o dinheiro, pudéssemos ajudar os pitombeirenses que trabalham conosco, a orquestra, os passistas. Agora, estamos duplamente de coração partido. Se eu disser que sei explicar essa angústia [do momento], estou mentindo. Essa última semana teria sido de muito trabalho, corre-corre, de ir atrás dos últimos detalhes para fechar o desfile. Estamos sentindo falta desse cansaço", confessa.

Hermes detalha que o plano era de que a Pitombeira saísse em cortejo pelas ladeiras na segunda, terça e quarta-feira, culminando na apoteose de aniversário. "A principal memória é dessa hora, a do desfile. Quando você vê a agremiação na rua, a sensação é de vitória, de dever cumprido. Mas é necessário preservar vidas, claro".

FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
A Pitombeira dos Quatro Cantos cancelou a live que faria na noite da Quarta-feira de Cinzas, quando completa 74 anos de história - FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM

Para a Troça Carnavalesca Mista Cariri Olindense, a lástima é ainda mais notória. Em 2021, o Velho do Cariri desceria, agora centenário, as ladeiras do Sítio Histórico para mais uma vez completar o ritual que abre oficialmente o período carnavalesco. Sem essa possibilidade, convidou a Spok Frevo Orquestra para tocar "diretamente" na casa dos brincantes, o que não vai mais acontecer. "Não temos plano B. Apostamos todas as cartas nisso [a live]. Não vamos fazer 100 carnavais, apenas 100 anos. Assim que pudermos ter carnaval, comemoramos o centenário", conta Ivison Santana, presidente do Cariri.

"Trabalhamos e juntamos dinheiro durante quatro anos para esses cem", detalha o presidente. Ivison também relata a dificuldade de quem tem no Carnaval a principal renda dos primeiros meses do ano. "Fazer carnaval, principalmente em Olinda, é difícil. Tem muita agremiação acabando, deixando de ir para as ruas por falta de apoio. Choramos com a notícia de proibição das lives. Quem não quer assistir uma live com Spok?", questiona.

A Ceroula de Olinda, por sua vez, decidiu elaborar uma remessa de colecionador de sua camisa. Não agendou lives, mas lamenta a distância física da folia, como relata um dos diretores, Carlos Vieira.

"Para mim, é muito chocante. Acompanho a Ceroula desde criança, meu pai me iniciou nessa tradição. A Ceroula é um costume familiar. Não ouvir o nosso hino, quando chegamos na frente da casa de Cabela [um dos fundadores, falecido em dezembro de 2018], ápice do trajeto, é completamente estranho. Amanheci triste, pensando que poderia estar no processo de início de Carnaval, como todos os anos. Espero que em 2022 possamos fazer um Carnaval brilhante", conta.

O hino citado por Carlos marca também o tema escolhido para 2021, fazendo alusão à folia remota: "Esse ano nosso carnaval será na lua".

 

ARQUIVO/CEROULA
Estandarte do Ceroula nos 25 anos da troça, em 1987 - ARQUIVO/CEROULA

O mesmo acontece com o Eu Acho É Pouco. O bloco do dragão também reverterá a renda de camisetas vendidas em prol dos trabalhadores da música (batucada e orquestra) e do apoio do desfile, entre eles, seguranças e bonequeiros. Colocou no ar, ainda, o Podcast Vermelho e Amarelo, em que debate temas além do Carnaval.

"Não é um produto comercial, mas serviu para botar para fora nossa frustração do não-carnaval e a necessidade de termos a responsabilidade coletiva de ficar em casa", pontua a integrante Maria Chaves. "Também discute a potência política do Carnaval, como espaço importante de manifestação e extravaso", completa.

O primeiro episódio chegou no aniversário do Frevo, na segunda-feira (9), com apresentação de Luciana Veras e Thiago Marinho. Entre os convidados, o maestro Risonaldo Verçosa , o cientista político Túlio Velho Barreto, e a própria Maria, dividindo histórias de suas lembranças de foliã. O segundo programa estreia na Terça-feira Gorda (16) e pode ser ouvido nas principais plataformas de streaming.

Atualização:

Após a publicação desta matéria, o Clube Carnavalesco Misto Elefante de Olinda e a Troça Carnavalesca Mista Cariri Olindense usaram seus perfis no Instagram para anunciar a manutenção de suas lives de Carnaval, mas reformuladas e adaptadas para apenas dez pessoas presentes, como exigido pelo Governo do Estado.

"Apesar das restrições impostas de última hora, na semana pré, sem possibilidade de diálogo, nós que fazemos o Elefante de Olinda compreendemos que o carnaval é mais do que apenas uma festa, é uma expressão popular de resistência! Por isso, passamos os últimos dois dias correndo atrás de todas as possibilidades possíveis. Nossos planos originais foram desfeitos e tivemos que recomeçar totalmente do zero, com o tempo curtíssimo", inicia o texto do Elefante.

"Para vencer mais esse desafio, tivemos que obviamente mudar o significado de 'imprescindível' no nosso vocabulário frevístico e nos readaptar! Felizmente conseguimos manter as atrações e vamos fazer um festa de aniversário linda. Você é o nosso convidado de honra!", reiterou o Cariri.

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