'Cancelamento' de Karol Conká revela perfil punitivista da internet

Considerada a vilã do BBB21, cantora teve sua carreira prejudicada pela participação no reality show
Márcio Bastos
Publicado em 28/02/2021 às 12:56
JULGAMENTO Rapper entrou no programa como uma das favoritas, mas saiu com prejuízos na carreira Foto: GLOBO/JOÃO COTTA


A ideia do Big Brother Brasil como um termômetro da sociedade brasileira não é absoluta, mas tem fundamento. Na casa mais vigiada do País, indivíduos lutam pela aprovação do público em busca de um prêmio milionário e, no caso de alguns, seus primeiros 15 minutos de fama. A cada edição, novas polêmicas e discussões sociais são pautadas a partir das dinâmicas do reality show. Neste ano, talvez a grande pauta seja, de fato, o cancelamento, como mostraram as mobilizações para as saídas de Nego Di e Karol Conká, participantes que deixaram a competição com recordes de rejeição (98,76% e 99,17%, respectivamente).

No caso da rapper curitibana, a participação no BBB21, que poderia potencializar o alcance de uma carreira aclamada, transformou-se em uma crise de imagem como poucas vezes pudemos acompanhar. Com comportamentos considerados abusivos e a profusão de preconceitos, a artista minou uma imagem solidamente construída ao longo da última década. Antes vista como um ícone do empoderamento e uma voz ativa na luta feminista e antirracista, Karol Conká se tornou, em um mês, a inimiga número um do Brasil.

Durante o programa, a artista perdeu mais de 600 mil seguidores no Instagram, teve sua participação cancelada em festivais, como o Rec-Beat e o Rock The Mountain, e foi alvo de ataques constantes na internet. Ninguém queria sua imagem associada à da rapper, acusada de xenofobia, de promover tortura psicológica e de criar um ambiente tóxico no reality show.

Ainda que o BBB seja um programa que, anualmente, transforma pessoas em arquétipos, como mocinhos e vilões (e as "plantas", isentos, entre eles), não houve em outras edições a mobilização contra um participante como aconteceu com Karol Conká. Extremamente equivocada dentro do jogo, a artista precisa ser cobrada por suas atitudes e, inclusive, ser responsabilizada por elas, mas as reações à sua persona pública revelam, também, muito do público.

A cultura do cancelamento, ao mesmo tempo em que busca algum tipo de justiça diante de ações dignas de repúdio, parece promover também um efeito de gozo coletivo na queda do outro. Disseminada na internet, acaba muitas vezes dando vazão não a uma busca por melhorias, mas a um desejo de linchamento. Não foram poucos os comentários racistas e misóginos direcionados a Karol. De supostos justiceiros, muitos se tornam carrascos, repetindo os erros que supostamente tentam condenar.

Como parte do jogo, a eliminação com rejeição recorde é um mecanismo plausível, uma resposta à sua postura reprovável. Mas, o que se viu nos dias anteriores à sua saída preocupou até os seus maiores críticos. Famosos como Neymar, Marília Mendonça e Anitta (eles mesmos já cancelados muitas vezes) pediram que os ataques à rapper cessassem após sua eliminação.

Fora da casa desde a última terça-feira (23), Karol tem feito uma peregrinação por programas, como o Mais Você, reiterando seus pedidos de desculpas. Ela afirmou que o programa acionou vários gatilhos emocionais que nem sabia existir e que se arrepende de ter entrado na atração. Tudo ainda é recente — e ela mal teve tempo de entender, de fato, o impacto das suas ações —, mas para algumas pessoas qualquer tentativa de redenção sua parece insuficiente.

Ainda é cedo para que Karol Conká mostre mudanças consolidadas, mas o ideal não seria torcer por sua evolução? O ostracismo não soluciona o problema e seu processo de redenção pode servir de exemplo para muitos. Perceber o peso do punitivismo é também entender que todos estão sujeitos a cometer erros e serem "cancelados".

O PÓS-CANCELAMENTO

Desde a noite de sua saída, Karol Conká tem, aos poucos, recuperado os seguidores que perdeu em redes sociais como o Instagram. Na plataforma, ela, que na segunda-feira (22) estava com 1,2 milhão de seguidores, agora tem 1,5 mi. O interesse por sua música também aumentou: em menos de três dias, ela ganhou mais de 30 mil novos ouvintes no Spotify e seu número mensal chegou a 722 mil usuários na plataforma de streaming.

Apesar desta reação positiva do público, a rapper ainda deve demorar algum tempo para se recuperar do baque causado por sua passagem pelo programa. Sua presença no GNT, canal do qual era apresentadora, ainda é uma incógnita. Também não se sabe quando seu nome voltará a circular por festivais de música, uma de suas principais fontes de renda. Os prejuízos causados por sua participação giram em torno dos R$ 5 milhões, segundo a Forbes.

Perdas semelhantes já ocorreram com outras celebridades, como Gabriela Pugliesi, que desativou suas contas nas redes sociais após aglomerar no início da pandemia. No caso de Karol, a virulência foi tamanha que serve, também, para que os próprios artistas reflitam sobre a cultura do cancelamento. A rapper tem recebido mensagens de acolhimento de outras celebridades, que dizem torcer por sua recuperação.

Em entrevista recente ao JC, Johnny Hooker, que guarda boas lembranças de seu trabalho com Karol Conká na música Pronto pro Rolê, reforçou que a artista é uma das maiores representantes do rap nacional e sua trajetória inspirou muita gente.

Um dos caminhos que deve reposicionar Karol Conká é justamente a sua arte. É esperado que artista, conhecida por letras de empoderamento e que abordam situações de sua vida, imprima suas experiências no BBB em seu próximo trabalho.

"Vou trabalhar no meu novo álbum e procurar uma terapia (risos)! Mas é importante frisar que dentro daquela casa as coisas se maximizam, é outro rolê. Então, mais uma vez, eu digo que seria impossível eu chegar onde cheguei se eu fosse essa pessoa que fui no BBB a vida inteira", afirmou em entrevista à Globo.

Como se observou em outras ocasiões, é possível ser "descancelado". Para Karol, com o racismo enraizado na sociedade brasileira, a tarefa deve ser mais árdua. Seu talento e resiliência, porém, devem lhe dar as ferramentas para se reconstruir.

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