SOCIEDADE

Dia da Mulher: articuladoras pernambucanas refletem sobre a data

Ao Jornal do Commercio, elas falam sobre dificuldades, alternativas e vislumbres conectados à realidade de ser mulher em um corpo social marcado pela misoginia

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Nathália Pereira

Publicado em 08/03/2021 às 7:30 | Atualizado em 10/03/2021 às 10:44
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A data foi institucionalizada pela Organização das Nações Unidas em 1975. Sua criação tem viés socialista e está fortemente ligada à luta de operárias russas e norte-americanas por melhores condições de trabalho, a partir da segunda metade do século 19. Fato é que o 8 de março, Dia Internacional da Mulher, apesar de ainda bastante associado a homenagens esvaziadas de sentido político, tem sido cada vez mais resgatado como símbolo de batalha por emancipação e libertação feminina em todas as suas pluralidades. O Jornal do Commercio conversou com sete mulheres, articuladoras da cultura pernambucana, sobre dificuldades, alternativas e vislumbres conectados à realidade de ser mulher em um corpo social marcado pelas chagas da misoginia.

A escritora e vereadora do Recife Cida Pedrosa, relembra um episódio, ocorrido há 18 anos, quando seu então marido havia acabado de falecer. Ela subia ao palco para recitar um poema, durante a Quarta Literária, evento organizado por Silvana Menezes, quando ouviu um colega comentar a seu respeito: "Essa viúva está bem interessante". "Isso me magoou muito", confessa. "Eu já era feminista, mas hoje sou tão 'de carteirinha' que na minha frente ninguém ousa mais fazer isso".

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Cida Pedrosa é escritora e vereadora do Recife - DIVULGAÇÃO

Cida recorda que até pouco tempo atrás, falar sobre machismo na cena literária independente era difícil e celebra as articulações das novas gerações. "Vários grupos de mulheres e escritoras têm me dado uma alegria enorme. Luna Vitrolira assumiu viés feminista e antirracista na sua obra, Odaílta Alves lançou [o livro] Pretos Prazeres (2020), hoje não se faz curadoria de eventos sem pensar em mulheres e negros... isso não surgiu de graça, veio quando escritoras abriram a boca", analisa. "A gente tem que não fechar os olhos para as violências contra nós, desde as simbólicas. Não há democracia enquanto uma mulher sofrer violência".

Outro olhar importante vem da cineasta Graciela Guarani, nascida na aldeia Jaguapiru, município de Dourados, no Mato Grosso Sul, e há dez anos moradora de Jatobá, Sertão de Pernambuco. Ela pontua que para os povos originários, debates a respeito de sexo e gênero costumar vir depois do que os sobre etnia.

"O processo de atravessamento é diferente. O que me atropela antes é o racismo, porque pertenço a um povo indígena no Brasil. A questão de ser mulher e periférica, além de indígena, se intensifica quando me aproximo do contexto urbano".

Para Graciela, o audiovisual é instrumento com o qual põe lentes focadas nos povos indígenas, o que se reflete em roteiros, direção e curadorias, como a do festival Cine Kurumin, já na 8° edição.

Sua parceira de profissão, Tuca Siqueira, chama atenção para o momento de crise política, financeira e sanitária que atinge o País. "O maior desejo da mulher que trabalha com cultura, hoje, é não morrer, literal e subjetivamente. Vivemos essa ameaça desde o início do Governo Temer", diz. "Quando a crise chega, traz todo tipo de retrocesso, inclusive de espaços conquistados. Na minha área, se existe pouco trabalho, os homens é que são chamados para as vagas, por exemplo. É um machismo muito sutil, que muitas vezes vem também de homens que admiramos, que são próximos".

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Tuca Siqueira, cineasta, durante filmagem - VICTOR JUCÁ/DIVULGAÇÃO

Na experiência da produtora Ana Garcia, só ao desbravar o universo fora da casa dos pais - o maestro Rafael Garcia e a pianista Ana Lúcia Altino - percebeu melhor que o mundo não funciona em pé de igualdade para homens e mulheres. "A provedora lá em casa sempre foi mamãe, não cresci com essa noção de que por eu ser mulher talvez não tivesse as mesmas oportunidades", confidencia. Desse entendimento, fez força motriz para aplicar no Festival No Ar Coquetel Molotov exercícios de ampliação de visões de realidade.

"O Coquetel sempre teve espírito meio punk rock, um link com os movimentos riot, uma pegada feminista. Garantir que a programação seja equilibrada, com mulheres também na técnica, em todos os palcos, é fundamental. Recentemente, criamos um conselho de seis mulheres, bem diversas, para pensar a respeito, para garantir que isso aconteça, porque entendemos que só existe mudança de verdade quando se mexe na estrutura", conta.

"Como se consegue ser positivo no momento que a gente está vivendo?", questiona a produtora. "Mas esse é o caminho que escolho, porque a gente precisa dessas energias para conseguir criar, fazer arte, algo novo, fazer a diferença no mundo. Se a gente ficar presa a tudo de ruim que vem acontecendo, não vamos conseguir enxergar o que tem de bom também, entende? É importante reforçar o bom. A quantidade de mulheres, inclusive em Pernambuco, que se sobressaíram nesse último ano... Melina [Hickson, produtora do Porto Musical] conseguiu criar o grupo Acorde (leia a respeito aqui), reunindo artistas, produtores, empresários de Pernambuco inteiro para discutir sobre cultura. É um poder magnífico conseguir fazer isso. Lia de Itamaracá está viva, com saúde, tem cantoras novas crescendo na cena... eu acho que a gente tem, sim, o que comemorar, o que não significa tapar os olhos para as dificuldades que a gente vem enfrentando como sociedade", assegura.

No teatro, a atriz e produtora Paula de Renor lembra o início de sua carreira, nos anos 1980, marcado pela preocupação. "Com roupas, postura, no contato com os responsáveis. Eram sempre homens nos lugares de liderança e ainda havia muito preconceito com atrizes", detalha.

Assédios também eram frequentes, assim como o clima de rivalidade feminina, estimulado pelo comportamento hostil dos homens. Ela relembra que até a marca deixada por uma aliança em seu dedo foi usada como desculpa para aproximações, digamos, grosseiras. Era difícil ser vista como profissional.

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Paula de Renor, atriz e produtora teatral - DIVULGAÇÃO

"No final dos anos 1990, quando as mulheres passaram a participar mais, isso foi melhorando muito. Hoje temos o que celebrar, mas ainda estamos nem perto do que deveria. Por isso, precisamos de mais mulheres na formulação de nossa política, das políticas públicas", opina.

Com a visibilidade profissional avolumada por conta da obra Diva, concluída em janeiro e na qual reproduziu uma vulva de 33 metros de altura, na Usina de Arte, interior do Estado, a artista visual Juliana Notari ficou mais sensível à amplitude da agressividade do sexismo. Diva é resultado de quase 20 anos de produções em que Juliana se debruça nas representações das fendas e feridas que perseguem os corpos e a vidas femininas. "Cinco milênios de patriarcado não acabam da noite para o dia", comenta. "A experiência Diva deixou evidente que ainda temos muito pela frente".

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A artista visual Juliana Notari - DIVULGAÇÃO

Perguntada sobre quais reflexões todos devem se propor a fazer a partir da simbologia do 8 de março, Juliana Notari cita a necessidade de atenção constante às engrenagens patriarcais, à urgência de uma educação não misógina para os meninos e a debates como os que cercam o acesso das mulheres aos seus direitos reprodutivos. Também destaca o aumento dos índices de agressões masculinas contra meninas e mulheres em ambientes domésticos no Brasil: "nesse momento pandêmico as mulheres estão sendo as mais violentadas".

ARTE, EDUCAÇÃO E FORÇA

Patrícia Naia é nome facilmente reconhecido na cena da poesia urbana recifense. À frente do Slam das Minas PE, poeta e professora, ela enxerga a educação como a arma mais eficiente para "empoderar meninas e mulheres, educar meninos e repreender os homens". Frisa que recortes de raça e classe precisam estar no centro dos debates sobre direitos das mulheres, com análises e contextualizações sobre os movimentos que desaguaram no que existe hoje.

"Aos poucos estamos rompendo barreiras e chegando em muitos espaços na cultura e na literatura", diz Patrícia. "Esses espaços são abertos muito lentamente, principalmente para mulheres poetas negras e da periferia. Mas estamos batendo o pé na porta. Se por um lado as editoras têm dificuldades de aceitar nosso trampo, criamos, de forma independente, nossas maneiras de nos publicar".

Sobre o que circunda este 8 de março, reflete:" Somos 'nosotros', mulheres negras, que sentimos mais a tomada de direitos. Acho que é uma data mais simbólica, de reflexão e luta, do que comemorativa".

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