A biblioteca de mais de 50 mil títulos que o professor, escritor e pesquisador Manuel Correia de Andrade (1922-2007) mantinha num apartamento nas Graças, Zona Norte do Recife, era uma amostra de sua compulsão por leitura, conhecimento e trabalho.
"A minha avó vivia dizendo: 'aqui não cabe mais livros'. Ele chegava com novos livros e dava para os netos entrarem com eles escondidos", relembra o neto João Correia, também professor, durante visita ao JC, juntamente aos professores Maria Rita Machado e Lucivânio Jatobá.
Esse acervo hoje está no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP, ao lado de coleções de nomes como Milton Santos e Caio Prado Júnior. A transferência, que era um desejo do intelectual, mostra a magnitude da sua relevância para as ciências humanas de forma interdisciplinar, com inestimáveis contribuições para a geografia, história, sociologia e até economia.
O legado de Manuel Correia de Andrade está incrustado na história política, social e intelectual do Brasil, sendo um dever da sociedade revisitá-lo, sobretudo no ano em que se comemora o seu centenário - em 3 de agosto de 2022, mais especificamente.
É com esse objetivo que o Seminário Nacional "A terra e o homem: Centenário de Manuel Correia de Andrade" será realizado entre terça e sexta-feira (5) no Centro de Educação da UFPE, no Recife. Clique aqui para conferir a programação completa.
"Os eixos do evento passeiam pelos temas mais abordados pelo professor Manuel, como o planejamento regional e territorial, a questão agrária e o meio-ambiente. As análises que ele fez foram muito importantes para o próprio Estado de Pernambuco, a exemplo da divisão dos polos de desenvolvimento", diz Maria Rita Ivo de Melo Machado, professora do departamento de história da UFRPE.
Manuel Correia de Andrade nasceu em 3 de agosto de 1922, no Engenho Jundiá, na Zona da Mata de Pernambuco. Cresceu numa sociedade patriarcal e viu de perto a dinâmica das tradições açucareiras. Essa visão seria essencial para que ele entendesse o Nordeste, região que abordou em muitos dos seus 100 livros.
"Acredito que sim, de vez que, vivendo em um engenho de açúcar no seio de uma família de preocupações eminentemente rurais, passei a observar como transcorria a vida no campo, tanto na casa-grande, com preocupações rotineiras, como na sociedade e, ao ver e conviver com os trabalhadores rurais, tinha dificuldade de compreender as diferenças que havia entre a vida na casa-grande e na 'senzala'", disse, em entrevista à Fátima Quintas registrada na coleção "Entrevista-Memória" (Editora Bagaço).
Morando no Recife, estudou no Liceu Pernambucano e ingressou na Faculdade de Direito, único curso de ciências humanas disponível à época. Viveu a efervescência dos movimentos estudantis e sociais no Recife, sendo colega de turma de Demócrito de Souza Filho - estudante assassinado em protesto contra o Estado Novo, na Praça do Diario. Chegou a militar ao lado de Gilberto Freyre na oposição a Vargas.
Lecionou no ensino médio de várias escolas, a exemplo do Americano Batista, e seu pensamento preocupado com as injustiças o levou ao governo de Miguel Arraes, participando de um órgão para assistir à população e ao trabalhador pobre do Sertão. Com o golpe de 1964, ficou preso por algumas semanas e depois partiu para um autoexílio.
"Tenho escrito trabalhos esparsos sobre o tema e os prejuízos que este golpe trouxe ao Brasil, procurando manter o sistema colonial ainda hoje dominante", disse, na entrevista a Quintas.
A sua verve questionadora também foi essencial para a sua principal obra: "A Terra e o Homem do Nordeste", prefaciado por Caio Prado Júnior, em 1963, na véspera do golpe.
O livro causou uma grande reação. Muitos geógrafos o consideram não-científico por analisar um longo processo político - o último capítulo da primeira edição, inclusive, falava sobre ligas camponesas. Hoje, é considerado pela Câmara Brasileira do Livro como um dos 100 livros do século 20.
"'A Terra e o Homem' vai contar como foi o processo de ocupação territorial e econômica, fazendo a divisão de sub-regiões do Nordeste. Ao mesmo tempo que ele relaciona as paisagens com as atividades econômicas, aponta conflitos, a exemplo das questões de trabalho", diz Maria Rita Ivo de Melo Machado.
Lucivânio Jatobá, professor do departamento de geografia da UFPE que trabalhou com Correia de Andrade de 1981 até o falecimento, ressalta a sua importância também na seara dos livros didáticos. "Até os anos 1970, o ensino de geografia no Brasil se baseava nos livros de Aroldo de Azevedo, famoso geógrafo da USP, e de Manuel Correia de Andrade com Hilton Sette", diz.
"Esse fato influenciou muitas gerações no Brasil inteiro. Os livros da Manuel, até mesmo os acadêmicos, se caracterizam por uma linguagem simples, clara e objetiva. Outro traço marcante dos seus livros é como ele mostra as relações entre o quadro natural e a sociedade", continua o professor.
No Jornal do Commercio, Manuel Correia assinou a série de textos "Pernambuco Imortal", que contava toda a história do Estado até o golpe militar. As publicações ocorreram nos anos 1990 e tiveram grande repercussão.
Na UFPE, Manuel exerceu cargos como chefe do Departamento de Geografia e História da Faculdade de Ciências Econômicas, além de coordenador do Curso de Mestrado em Economia.
O seu reconhecimento pode ser medido pelas importantes homenagens e títulos que recebeu: professor emérito da UFPE (1989); pesquisador emérito da Fundação Joaquim Nabuco (1989); doutor honoris causa pela UFS (1996), pela UFRN (1995), pela UFAL (1994) e pela Universidade Católica de Pernambuco (1978); Medalha da Ordem Nacional do Mérito Científico, do Ministério de Ciência e Tecnologia (2003), entre outras.
Em 1984, a convite de Gilberto Freyre, foi nomeado diretor do Centro de Documentação e de Estudos da História Brasileira Rodrigo Mello Franco de Andrade (Cehibra), da Fundação Joaquim Nabuco, cargo que ocupou até 2003.
"Ele tinha uma espécie de compulsão pelo trabalho", recorda Lucivânio Jatobá. "Quando estava internado na UTI, pedia aos médicos para ter alta porque não poderia perder uma palestra que tinha para fazer, dizia que precisava ir para casa. Ele fazia muita coisa do ponto de vista intelectual, se aposentando de forma compulsória", enfatiza.
Manuel Andrade faleceu em 2007, em plena atividade intelectual, deixando uma grande contribuição para as Ciências Sociais.