"Já são cinco da manhã e eu não durmo quase nada". "Que tontos, que loucos, somos nós dois". "Que ingrata solidão porque me faz lembrar de você". Esses são três trechos de bregas muito conhecidos no Recife: "Obsessão", de Vício Louco, "Perdidos", de Kelvis Duran, e "Ingrata Solidão", da Ritmo Quente. O que eles possuem em comum? Todos são versões de bachatas, ritmo popular na República Dominicana que nasceu sob a influência do bolero.
A esses exemplos se somam muitos outros, todos lançados na década de 2000. Como o brega circulava paralelamente ao mercado da música formal, com suas carrocinhas de som e rádios comunitárias locais, as questões dos direitos autorais eram bem menos sensíveis.
E após 20 anos das gravações, a verdade é que a maioria dos recifenses não conhecem as músicas originais. Afinal, são quase 5 mil quilômetros que separam Santo Porto, capital dominicana, do Recife.
Como começou?
É difícil apontar datas exatas de lançamentos de discos da música brega, sobretudo após a consolidação da pirataria no começo dos anos 2000. Apesar disso, é possível afirmar que "Obsessão", da Vício Louco, seja o primeiro brega originário de uma bachata.
Quem explica é Dedesso, que gravou o vocal masculino da canção e é cantor da banda até hoje. "Os empresários Keka, Sérgio e Elvis (Pires) foram os criadores da Vício Louco. Na época, a irmã de Keka tinha voltado de uma viagem da República Dominicana e conheceu Obsession, uma música da banda Aventura. Ela mostrou a música para Keka, que escreveu a nossa versão junto com Elvis", diz.
Formado nos anos 1990, o grupo Aventura foi uma febre em muitos países latino-americanos. Apesar da origem dominicana, os seus membros foram criados no Bronx, em Nova York, sendo influenciados por R&B, pop e hip hop. Isso acabou dando um tom mais "jovial" para as suas bachatas. "Obsession" estava no disco "We Broke the Rules", lançado em 2002, mesmo ano da fundação da Vício Louco.
"A música estourou em poucas semanas. Divulgamos em rádios comunitárias e contamos com a venda nas carrocinhas. Já saiu um CD, na verdade, que também tinha "Frio da Solidão", "Trote", "Pica-pau", "Rap Tecno", "Alucinações" e "Pra Que a Solidão", que também é uma bachata", diz Dedesso.
"Eu acho que deu certo por ser uma coisa diferente naquele tempo. Era algo jovem e ousado. Eu acho que isso rolou e rola até hoje. A gente mudou a batida do brega, colocamos um baixo bem pegado e a percussão também ganha um bongô."
Depois de Obsessão, a banda Aventura virou o alvo favorito das bandas de brega para regravações. Do disco "We Broke the Rules", a Vício Louco também tirou "Todavia Me Amas", que virou "Romeu e Julieta", da Swing do Amor. A banda Ritmo Quente, por sua vez, escolheu a faixa "Gone" (que já era uma regravação da banda norte-americana N'Sync), que virou "Ingrata Solidão".
Do álbum seguinte da Aventura, "God’s Project" (2004), saíram os bregas "De Joelhos", da Banda Kitara ("Angelito"), "Coisita Linda", da Vício Louco ("La Boda") e "Se Prepara", da Banda Boa Toda ("Un Chi Chi").
A Swing do Amor, aliás, se tornou a banda que mais regravou Aventura: "Eterno Amor" ("La Novelita"), "Minha Morena" ("Cuando Volveras"), "Teus Beijos" ("Un Beso"), "História de Amor" ("Our Song"), entre outras.
É interessante pensar que em músicas como "Obsessão" e "Ingrata Solidão" (essa segunda com vocais de Formiga, falecido em 2008) deram uma nova padronização para os vocais masculinos do brega, bastante diferentes daqueles das bandas consagradas dos anos 1990, como Labaredas, Só Brega, Paixão Brasileira e Camelô. Era um vocal um pouco mais agudo e jovial, próximo do Romeo Santos (vocalista da Aventura).
Sequência de hits
Em 2004, chega ao mercado do brega um cantor que tem nas versões de bachatas os seus maiores sucessos: Kelvis Duran. São eles: "Estando com Ela, Pensando em Ti" (“Dos Locos”, de Monchy & Alexandra), Perdoa-me (“Perdoname, da mesma dupla) e "Perdidos" (mesmo título, também de Monchy & Alexandra).
"No início da minha carreira solo, há uns 19 anos, uma amiga da minha empresária nos apresentou essas músicas. Ela as conheceu em um disco na Suíça. Eu achei a pegada bem diferenciada, com mais compasso. Pensei que daria para dançar o brega nessas bachatas. Então, eu mudei a bateria, mexi em alguns instrumentos e deu no que deu", diz Kelvis Duran.
"Acho que tem tudo a ver com o romantismo, o tempo, a dança. Eu virei um fã de bachata até hoje. É um dos ritmos que mais escuto. No caso, me identifiquei com Monchy & Alexandra pelo timbre da voz e a forma de cantar. Nunca tive contato com eles, mas a minha produção já entrou em contato com as pessoas que tomam conta das canções aqui no Brasil."
Para Duran, o que mais diferencia o brega da bachata é a questão percussiva. "Eles usam um bongô bem eletrizante, aquela batida percussiva muito envolvente. Aqui, misturamos isso com a bateria do brega."
Música latina
Esse diálogo com a bachata é um exemplo de como o brega tem um histórico envolvimento com a música latino-americana. "Isso o que se entende como música brega e música latina talvez tenha uma conexão muito grande através da canção romântica, que é uma questão que aparece em vários Estado-Nação do continente. Muitas pesquisas pensam a canção romântica e o melodrama como traços fundantes desses Estados", diz Antônio Lira, doutorando em comunicação na UFPE.
"Essa relação aparece porque estamos falando de músicas que são populares massivas, que falam de amor de um jeito que a intelectualidade burguesa e branca costuma levar para o lugar do estereótipo, do popularesco e do escrachado demais. Se formos analisar a questão fundante da canção romântica, observando a história dos ritmos, essas disputas de gosto (do que é bom ou ruim) sempre aparecem. São hierarquias de gênero, classe e raça que fundam esse processo colonial que está impresso na nossa subjetividade."
Especificamente sobre o Recife, Antônio relembra que muitas bandas de brega surgiram nos morros da região de Casa Amarela, na periferia da Zona Norte. "Todos aqueles bairros 'deságuam' no Mercado de Casa Amarela, onde também circulava a música latina. Existe uma festa chamada Brega do Trabalhador e, no dia seguinte, primeiro domingo do mês, existe a Noite Cubana. Ambas ocorrem no Clube Bela Vista."
Thiago Soares, autor do livro "Ninguém É Perfeito e a Vida é Assim: A Música Brega em Pernambuco", ressalta que parte da influência latina no brega pernambucano também ocorreu através do brega do Pará, estado fronteiriço com regiões que consumiam a música caribenha. "Existe um outro aspecto que é o midiático: a presença da rádio popular nas periferias do Recife e dos DJs de música latina, como o Valdir Português e o Edinho Jacaré, da Noite Cubana. Existiam esses DJs também tocavam em rádios, disc jockeys."
Releituras
Ainda existe o fenômeno das releituras, algo que acompanha a história do brega até recentemente, com as versões de música americanas que são sucesso nas vozes de Priscila Senna ou Eduarda Alves. "A própria Jovem Guarda, que deu origem a nomes como Reginaldo Rossi, já fazia isso ao regravar o 'iê-iê-iê'. Então, já existia aquela tradução ali. Essas versões já tem uma genealogia”, diz Antônio Lira.
"Como o brega é uma manifestação periférica, no sentido de estar à margem da indústria formal, isso acaba correndo de forma independente, mas seguindo uma lógica do pop no sentido de fazer hit, de fazer refrão chiclete. O brega é muito pop, por isso está sempre olhando para essa referência internacional”, finaliza.
* Essa é a terceira reportagem de uma série em celebração ao Novembro Brega. Confira as demais matérias: