O cineasta pernambucano Hilton Lacerda ("Tatuagem", 2013) retornou ao universo do Recife dos anos 1990 para dirigir a segunda temporada de "Lama dos Dias", continuação de um projeto iniciado no Canal Brasil em 2018.
Os seis novos episódios são ambientados em 1994, ano do lançamento do álbum "Da Lama ao Caos" (que tem capa assinada por Lacerda junto com Helder Aragão, o DJ Dolores). Mais do que resgatar o ambiente efervescente, a série provoca uma reflexão sobre o processo criativo nos dias atuais. Como resgatar aquela inventividade para os dias atuais?
"Como usar as gambiarras tecnológicas para modificar o pensamento de uma cidade? Foi o que aconteceu naquele momento, em 1994. [...] Uma geração inteira pôde entender como usar de maneira efetiva essas gambiarras. Hoje, existe o parque de diversões das redes sociais. O que você pode fazer com o mundo de hoje, no ponto de vista da criação de arte?."
Entrevista - Hilton Lacerda, cineasta
Como foi o processo de expandir o universo de Lama dos Dias nesta nova temporada? A movimentação audiovisual e a criação de festivais são alguns elementos.
O ano de 1994 foi muito importante para o cinema e para a música. Eram dois universos que andavam com uma aproximação desde dos anos 1980. Nesse período, tivemos três curtas-metragens antes da gravação de "Baile Perfumado": "That's a Lero-Lero", de Lírio Ferreira, de "Maracatu, Maracatus", de Marcelo Gomes, "Cachaça", de Adelina Pontual. Eles já têm músicas do manguebeat. Na série, o .. é muito iconoclasta e resolve até contradizer esses curtas que estão sendo feitos. Outra coisa que fez Pernambuco ser protagonista foi um festival como o Abril Pro Rock. Tudo o que estamos inventando estava se criando desde a primeira temporada, com esse arco todo. Algo que marcou bastante também foi a Copa de 1994, que aparece na série. Ela começa em março de 1994 e termina um dia depois que a seleção brasileira chega no Recife para comemorar o título.
Ainda sobre esse lado da história do audiovisual: o protagonista Farmácia decide produzir um curta-metragem ao ser impactado por um filme de 1979. Essa temporalidade faria alguma referência ao movimento Super-8, que também tinha muito do 'faça por si mesmo' que vimos depois no mangue?
O personagem Domingos, que é o diretor do filme de 1979, é inspirado em várias gerações do cinema. Ele está na geração do Super-8, mas a construção dele tem muito a ver com um filme que foi lançado em 1978: "O Palavrão”, de Cleto Mergulhão, o último filme feito em Pernambuco antes de "Baile Perfumado". Ele abraça um monte de personagens e traz uma anarquia. É um personagem muito importante nesta temporada, com uma iconoclastia semelhante a de Farmácia.
A série é baseada em um período que você viveu, mas traz muitos elementos ficcionais. Como é esse processo de separar ficção e realidade?
É muito difícil ficar representando o que você viveu, pois você não consegue dar conta do que é real ou não. O mundo ficcional é interessante porque te abre possibilidades, para criar personagens que vão fazer comentários que são dos próprios personagens, que não estão necessariamente em volta da cena musical. Para a gente, é como falar do movimento a partir das periferias do movimento, sem necessariamente estar no centro dele. A partir daí, você ganha uma liberdade muito grande. Até porque, fazendo isso, a gente ‘macula’ um pouco da história, que não pode ser tocada às vezes. Vira meio ícone, lenda, as pessoas são meio imutáveis. Inclusive, colocamos uma espécie de iconoclastia em relação à coisa, como piadas. A série vai a fundo nessas coisas e brinca muito.
Como você acha que a série contribui para a preservação e valorização do legado cultural do manguebeat?
Acho que o fundamento dela é um pouco isso. Aquele momento era um momento de invenção muito grande. Como usar as gambiarras tecnológicas para modificar o pensamento de uma cidade? Foi o que aconteceu naquele momento, em 1994. A gente sabia de tudo o que acontecia no mundo, mas não tínhamos acesso aos instrumentos. Sabíamos que as coisas existiam, mas não tínhamos como fazer, de mostrar que éramos cosmopolitas. Uma geração inteira pôde entender como usar de maneira efetiva essas gambiarras. Hoje, existe o parque de diversões das redes sociais. A série vem em um momento conveniente para que muita gente possa se transformar. O que você pode fazer com o mundo de hoje, no ponto de vista da criação de arte?
Você ainda consegue observar algo do mangue na produção audiovisual da atualidade?
A profissionalização tem muita coisa boa: as pessoas são remuneradas. Por outro lado, quando as coisas ainda são mais ‘românticas’, existe uma geração que consegue transformar isso em linguagem audiovisual. Quando o setor se profissionaliza muito, a gambiarra é a forma que você consegue usar um orçamento menor para fazer algo maior. As coisas que a gente faz hoje são aportadas, temos apoio, mas é muito pouco. O processo de criação pode ser feito de muitas maneiras, mas o exercício coletivo continua sendo uma das coisas mais importantes que temos no audiovisual. Acho que isso foi feito lá atrás e continua nos dias de hoje. Do ponto de vista criativo, o que realizamos aqui ainda é bastante amplo no pensamento dos diretores, roteiristas e criadores. Isso é algo muito importante no cinema.
A primeira temporada se passou em 1990, a segunda em 1994... Teremos uma continuação de 'Lama dos Dias'?
Quando o projeto foi pensado, queríamos três temporadas nos anos de 1990, 1992 e 1994, respectivamente. Mas, a gente entrou em uma crise do audiovisual. Tivemos um atraso por conta das trocas de governo entre uma temporada e outra. Assim, decidimos ser mais radicais no sentido de trazer a nova temporada para 1994. Criamos uma lapse maior de mudança dos personagens. A ideia é fazer uma terceira temporada, se der certo. Fizemos um desenho para três temporadas. Vamos observar como a história se comporta durante esse tempo, com o que ocorre no país e com as pessoas.