Um dos nomes mais representativos das artes visuais em atuação, o pintor João Câmara celebra 80 anos em uma interessante sintonia com dilemas e discussões da atualidade.
Quando a Inteligência Artificial já possibilita a criação de infinidade de imagens através de comandos, o artista prova o insubstituível papel do humano com desenhos digitais de sua autoria em exposição realizada no Museu do Estado de Pernambuco, com visitação entre esta quinta-feira (12) e 14 de julho.
"João Câmara - 80 anos" é composta por 85 pinturas digitais em grandes dimensões, realizadas ao longo de uma década. As telas foram originalmente executadas em programas de pintura eletrônica e processadas fisicamente em tela com tintas de pigmento.
O acervo também apresenta pinturas em óleo sobre tela, antigas e inéditas. A curadoria da mostra é de Weydson Barros Leal e a produção é de Vera Magalhães e Beth Marinho.
Apesar da técnica atípica, as telas são inconfundíveis. Resgatam exatamente o universo imagético e imaginário de Câmara, com cenas ousadas que mesclam o seu teor político com uma perspectiva surrealista, quase sempre com situações ficcionais e um dinamismo cinematográfico. A mente do artista é o algoritmo que reconhece esses padrões temáticos e estilísticos.
Interesse pelo digital
A trajetória de João Câmara com as artes plásticas data de 1960, quando apostou em pinturas de grandes dimensões a óleo e encáustica, dando início a exposições em salões e galerias.
Na década de 1970, produz a marcante série "Cenas da vida brasileira" (1974 - 1976), composta por dez pinturas e cem litografias que fazem alusão imaginativa e crítica à Era Vargas. Nos anos 1980, começa a idealizar a série "Duas Cidades", com 38 pinturas e 18 objetos que montam paralelos paisagísticos entre Recife e Olinda.
É na década de 80, quando os microcomputadores dão um maior senso de proximidade entre homem e máquina, que nasceu o seu interesse pela computação gráfica. Na década de 1990, Câmara chegou a ter uma coluna chamada Arte Digital, no "Diario de Pernambuco", onde publicava textos e pinturas feitas pelo computador.
Mas foi a partir dos anos 2000, com a chegada do novo milênio, que a sua produção e pintura digital se acentua. Nessa época, ele produziu obras de grandes dimensões e painéis para espaços públicos e séries de inspirações literárias.
Exposição
Nas telas reunidas para a exposição "João Câmara - 80 anos", o artista mostra como as telas digitais preservaram a sua habilidade para criar ambientes e personagens - com muitas figuras femininas, é claro.
Esses personagens, inclusive, ganham estéticas que lembram os avatares de jogos de simulação da vida real, a exemplo do Second Life - a renomada artista chinesa Cao Fei, por exemplo, criou várias obras de arte contemporânea baseadas neste game.
"Sou um pintor de figuras e da substância e ambiência delas. Tudo que envolve das figuras é uma linguagem peculiar, própria do tropo figurativo. O computador não resolve esses quiproquós. Nem a IA lida bem com isso, ainda. Sabe-se, mais ou menos, por engenharia reversa, como um algoritmo responde a um comando narrativo, um texto descritivo. Pouco se sabe como a mente humana processa e gera esses mesmo comando", diz o artista, em entrevista publicada no catálogo da exposição.
"Muito menos se sabe a razão para esse impulso. O computador, contudo, oferece simulacros oportunos para o encaixe de mundos imaginários, tridimensionais. É veloz, multiverso, uma caixa cenográfica virtual onde pude mergulhar minhas figuras, muito por inveja da mobilidade visual do cinema."
Arte e tecnologia
Em um momento em que a inteligência artificial está transformando rapidamente diversos campos, a incursão de João Câmara neste território reafirma a relevância da arte como um espaço de inovação e questionamento. Esta exposição, portanto, acaba sendo também uma provocação para o público reflita sobre o papel da arte e da tecnologia na contemporaneidade.
Aos 80 anos, Câmara reafirma sua posição como um artista visionário e continua a desafiar limites e a inspirar novas gerações. Sem abrir mão de suas origens, abraça o novo com entusiasmo e profundidade intelectual.