Índios fazem o seu próprio lockdown em Pernambuco

Aumento dos casos da covid-19 nos municípios do interior do Estado preocupa a comunidade indígena, que organizou barreiras em seus territórios e orientou as populações a ficar em casa
Adriana Guarda
Publicado em 17/05/2020 às 15:35
Populações indígenas tentam se proteger contra a covid-10 Foto: AGÊNCIA BRASIL


As comunidades indígenas de Pernambuco estão implementando o seu próprio lockdown (bloqueio total). Num cenário de políticas públicas frágeis, os povos criaram ações particulares no enfrentamento ao novo coronavírus. Quem tenta entrar no território Kambiwá, distribuído entre os municípios de Inajá, Ibimirim e Floresta, depara-se com um bloqueio. Para passar pela barreira, é preciso informar o destino do veículo e se comprometer a não parar nem descer nas aldeias. No local, também foi improvisado um toldo, com um fogão a lenha e uma pequena estrutura, para garantir 24 horas de vigília realizada por guerreiros e jovens indígenas. Em Pesqueira, o cacique Marcos Xukuru montou uma equipe para ajudar no preenchimento do cadastro do auxílio emergencial e foi para a fila da Caixa Econômica distribuir máscaras, álcool em gel e água para a população.

O avanço de casos da covid-19 no interior refletiu sobre as populações indígenas do Estado, que estão concentradas em 57 municípios fora da Região Metropolitana do Recife (RMR), de acordo com números do IBGE. O Instituto decidiu antecipar os dados do Censo 2021 com informações sobre índios e quilombolas para ajudar no combate ao coronavírus. No Brasil, a doença já atingiu 38 povos indígenas, contabilizando 446 infectados e 92 mortos, de acordo com dados da última sexta-feira (15) da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Aqui no Estado, o vírus já atingiu cinco etnias, com 18 infectados e quatro mortes, pelos dados da Rede de Monitoramento de Direitos Indígenas de Pernambuco (Remdipe). Por sua maior proximidade com a área urbana, os Fulni-ô, em Águas Belas, são os que concentram o maior número de casos.

Pernambuco é o sexto Estado brasileiro com maior população indígena e o primeiro do Nordeste. As 15 etnias têm seus territórios localizados no Agreste e Sertão, com aldeias distribuídas pela zona rural dos municípios. A distância do centro das cidades dificulta o acesso aos hospitais. Sem falar que a maioria não dispõe de leitos de UTI. Isso fez com que as comunidades tomassem suas próprias medidas de proteção. “Tentamos proteger nosso povo por nossa conta, mas tem um momento que vai ficando difícil. Por isso, fomos procurar a prefeitura para pedir um apoio. Manter os bloqueios tem um custo. O pessoal é nosso, mas á preciso pagar R$ 50 de aluguel do toldo por dia e ter alimentação para quem fica na barreira”, observa o cacique Zuca Kambiwá.

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Com uma população de 2 mil índios distribuídos em sete aldeias, os Kambiwá não registraram casos da covid-19 em seu território. A coordenadora de educação da comunidade, Francisca Kambiwá, conta que os bloqueios começaram desde que chegaram as primeiras notícias da doença no Estado. “Nosso primeiro bloqueio começou no dia 20 março e ficou até 30 de abril. Tudo bancado pela comunidade. Agora vamos repetir por mais 15 dias até 30 de maio. Nosso território fica próximo à BR-110, que dá acesso a várias cidades e nosso território é um atalho, mas não podemos deixar ninguém trazer essa doença para nosso povo. Aqui em Ibimirim já são 11 casos confirmados e sete suspeitos”, diz, preocupada.
O lockdown Kambiwá será duro. Visitantes estranhos que desobedecerem as regras “vão se ver com os índios”, como eles dizem. Enquanto os moradores devem seguir o que ficou combinado: não sair da aldeia.

“O único carro autorizado a entrar na aldeia é o da saúde. As compras de supermercado podem ser feitas em dois comércios que funcionam aqui dentro, que estão fazendo entrega e obedecendo às normas sanitárias. Se for algo que não tem nesses mercados ou produto de farmácia, as pessoas pedem de fora, mas também para ser entregue na aldeia. Quando chegam aqui, esses carros param no bloqueio e as pessoas vão buscar as mercadorias, que precisam ser higienizadas antes de entrar nas casas. As pessoas não podem sair, só em caso de doença”, explica Francisca, deixando claro que a ordem é ficar em casa.

O recado das lideranças está escrito numa faixa nas principais entradas e saídas da comunidade: #FicaEmCasaPankararu. As 15 aldeias onde vivem 7 mil indígenas estão localizadas num território que se espalha pelas cidades de Tacaratu, Petrolândia e Jatobá. Um dos líderes Pankararu e coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Vasco Sarapó, diz que conscientizar sobre o isolamento social é importante porque muitas pessoas não entendem a importância. “Precisamos dialogar muito com a comunidade porque uns entendem e outros não entendem. Essas pessoas que são cabeça dura veem no governo federal um aliado, com um presidente que incentiva aglomeração e alguns querem seguir o exemplo. Nossa sociedade é coletiva, somos um povo que gosta de viver em comunidade, mas é preciso entender esse momento”, alerta Sarapó.

SOBREVIVÊNCIA

A paralisia provocada pelo coronavírus também afetou as principais atividades econômicas das comunidades indígenas, que vivem principalmente da agricultura familiar, da pecuária, do artesanato e do funcionalismo público. O auxílio emergencial tem sido uma alternativa de recurso nesse momento, mas as filas na Caixa Econômica aumentam o risco de contágio. Alguns índios desistiram de buscar o dinheiro com medo de contaminação. “Eu mesmo não quis buscar. As filas eram enormes, com as pessoas dormindo no chão. Aqui em Águas Belas tem uns supermercados que aceitam fazer a transferência do valor pra eles e a gente faz compras lá. Eu preferi fazer isso”, conta o cacique Cícero Fulni-ô. Ele diz que se não fosse o dinheiro do governo federal, os artesãos estariam passando necessidade.

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