É hora de discutir reforma tributária em plena crise de covid-19?

Em debate na Rádio Jornal, especialista questiona se esse é o momento adequado para se discutir a reforma tributária em tramitação no Congresso Nacional
JC
Publicado em 04/08/2020 às 17:19
Pólo Médico poderá ser mais onerado com a reforma tributária. Por outro lado, equipamentos, insumos e medicamentos com a alíquota única serão desonerados Foto: Foto: Arnaldo Carvalho/JC Imagem


O enfrentamento à pandemia fez explodir os gastos públicos no Brasil, que deve chegar ao final do ano com um déficit primário de cerca de R$ 900 bilhões e uma dívida pública que vai saltar de 76% do PIB para 90%. Diante desse cenário em que o Estado brasileiro precisa de mais dinheiro para custear suas despesas cada vez maiores, e agora urgentes, a advogada tributarista Mary Elbe Queiroz questionou se esse é o momento adequado para se discutir a reforma tributária, em tramitação no Congresso Nacional.

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Ela vê um risco de aumento brutal do atual peso tributário, que compromete hoje 35% da economia brasileira. "A carga tributária é do tamanho da despesa. Muita despesa, muita carga", resumiu a advogada durante o debate da Rádio Jornal, na manhã desta terça (4) com o radialista Geraldo Freire. "Defendo a reforma administrativa antes da tributária. O Estado é gastador e presta um serviço de baixa qualidade. Essa reforma vai aumentar a arrecadação, mas nunca quer se rever o lado dos gastos", disse.

DIVULGAÇÃO - "Defendo a reforma administrativa antes da tributária", diz a tributarista Mary Elbe Queiroz

Também participando do debate, o ex-senador Armando Monteiro (PTB), concordou que é urgente discutir a qualidade do gasto público no Brasil com uma ampla reforma administrativa "para que os recursos sejam direcionados para quem mais precisa e não para sustentar privilégios", mas destacou que, agora, é a hora da reforma tributária. "Não há nada pior em tributos que o status quo. Vivemos um sistema caótico, complexo e regressivo (os mais pobres pagam mais). Então, o pior dos mundos é onde estamos, reformar o sistema tributário é imperativo", disse o ex-senador.

Segundo Monteiro, o momento é oportuno porque a sociedade chegou a um consenso que nunca existiu sobre o debate. "Vejo estados como Piauí e São Paulo alinhados numa mesma posição e um Congresso reformista. A hora é essa", argumentou. Ele diz que a reforma vai trazer um impacto positivo de melhoria do ambiente de negócios no País, hoje amarrado a um sistema tributário complexo e oneroso para as empresas.

O ex-senador lembrou que o debate hoje em curso no Congresso traz propostas que foram buscar exemplos de sistemas tributários que funcionam no mundo. "As PECs 45 e 110, a emenda substitutiva 192 dos Estados e a proposta do governo, todas elas dialogam com o IVA (imposto sobre valor agregado), que 160 países no mundo adotam. É um conceito clássico, em que a empresa paga sobre o valor que agrega ao produto e, adicionado na etapa produtiva,  gera créditos nas etapas anteriores até a venda final", resume.

REGRESSIVIDADE

Presente na conversa, o secretário da Fazenda de Pernambuco, Décio Padilha, coordenador Nacional do Grupo da Reforma Tributária do Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária) destacou que a iniciativa dos secretários dos 27 Estados trouxe melhorias à PEC 45, de autoria do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), que tem apoio do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Foto: Filipe Jordão/ JC Imagem - "O pior dos mundos é onde estamos, reformar o sistema tributário é imperativo", diz o ex-senador Armando Monteiro.

"Trabalhamos por mais de um ano sobre os modelos indiano, canadense e europeu, que está ultrapassado, adaptando à proposta mais moderna da PEC 45, que tinha falhas grandes", disse, recordando que as sugestões presentes no substitutivo 192 angariou apoio tanto de Maia quanto de Baleia Rossi.

Segundo Padilha, a proposta melhorou a PEC 45 no sentido de redução da regressividade, prevendo devolução de até 17% do imposto pago, como acontece no sistema de tax free, já que esse novo IVA é um tributo sobre o consumo (concentra a PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS). "Temos o cadastro de quem ganha até dois salários mínimos e fizemos um teste piloto com 95% de sucesso", revelou ao argumentar sobre a eficácia do sistema proposto.

A ideia dos secretários também traz a proposta de desenvolvimento regional, na qual uma parte do imposto arrecadado vai para um fundo, de forma a criar mecanismos de atração de investimentos para os Estados mais pobres sem que haja a necessidade de se haver a atual guerra fiscal. E também traz o conceito de compensação para os estados mais ricos, já que o novo tributo incidirá sobre o Estado consumidor e não mais sobre o produtor. Mantém ainda a Zona Franca de Manaus e a opção do Simples para as empresas menores.

ALÍQUOTA

A advogada tributarista Mary Elbe Queiroz se mostrou, durante todo o debate, pessimista em relação à reforma. "Não vamos ter simplificação, já vi inconstitucionalidades. Há a promessa de reduzir litígio, mas isso também não vai acontecer. O povo precisa ser alertado que as propostas prometem muito, mas não acontecerá. Além disso, a gente ainda não sabe qual será a alíquota do novo tributo", criticou.

Nando Chiapetta/ Alepe - "Nenhum país se desenvolveu sem um sistema tributário razoável", lembra o secretário da Fazenda de Pernambuco, Décio Padilha

Ela diz que se fala em uma alíquota de 25%, mas o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) constatou peso de 29%. Mary Elbe lembra que a proposta do governo - que fatia a reforma para que a votação no Congresso seja simplificada, evitando assim um quórum qualificado de PEC - traz um percentual de 12% só de PIS e Cofins. "Já se vê que não será 25% em relação aos outros componentes do tributo", disse. "A proposta fala em reforma com transparência, tributo por fora (valor expresso na nota fiscal)... Mas quanto será esse valor, ninguém sabe."

Outro aspecto da reforma tributária que a especialista critica é em relação ao aumento da carga para o setor de serviços, além de acabar com o Simples, na versão proposta pela PEC 45, "empresas que geram 90% dos empregos". "Os prestadores vão pagar a conta da educação, da saúde, num momento de crise vamos aumentar o tributo de educação e saúde", disse. Na visão dela, os Estados gastaram muito, não souberam aplicar os recursos com sabedoria e com a crise do comércio "querem abocanhar a parte do federal e dos municípios." Segundo ela, todas as propostas têm um impacto perverso sobre o setor de serviços.

Sobre essa questão, o senador Armando Monteiro argumentou que há distorções e os prestadores de serviço hoje precisam ser mais onerados, já que a indústria é quem paga a maior parte dos tributos. "Estamos vivendo um período de desindustrialização no Brasil e não tenho dúvida que a carga tem influência. COm um sistema tributário mais oneroso, na visão do ex-senador, a indústria nacional perde a competitividade em relação às concorrentes externas, perdendo produtividade. O setor de serviços, por outro lado, não tem concorrência externa.

"É preciso lembrar que o setor de serviços é heterogêneo. O pequeno prestador vai continuar no Simples, esse não será alterado", disse Monteiro. Por outro lado, argumentou, os prestadores de maior porte, o escritório de contabilidade, advocacia, tecnologia da informação que vendem para pessoas jurídicas não sentirão um reflexo grande, já que o contratante vai se creditar do tributo maior, pois quem contrata serviço não se credita do imposto.

Monteiro deu como exemplo a cadeia da saúde, importante pólo de serviços do Recife. "Evidente que quem tem interface com o consumidor final vai ser mais afetado, mas, por outro lado, todos os equipamentos, insumos e medicamentos com a alíquota única serão desonerados. É preciso ver o efeito sobre o agregado da economia."

Criticando a proposta da  administração federal, que não levou em conta o trabalho dos secretário de Fazenda, Décio Padilha disse que não há coordenação do governo sobre o assunto. "Nenhum país se desenvolveu sem um sistema tributário razoável", disse lembrando da carga de 35% do Brasil, comparável a dos países da OCDE (clube de países ricos), mas que não entrega serviços de saúde ou de educação adequados.

Mary Elbe reforçou a necessidade de readequar as despesas do Estado brasileiro para que não haja aumento da carga, no que foi apoiada pelo ex-senador. "Temos que discutir, o Estado brasileiro hoje é para as corporações, para prover serviços melhores nas áreas essenciais ou para sustentar privilégios dos altos segmentos do funcionalismo público?" 

 

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