Duas obras de grande sucesso da romancista canadense Margaret Atwood, "O Conto da Aia", publicado em 1985, e a sua continuação, "Os Testamentos", de 2019, se converteram em best sellers. O livro original inspirou a série televisiva The Handmaid's Tale que se passa na fictícia República de Gilead, onde a milícia extremista cristã "Os Filhos de Jacó" consegue dar um golpe e instauram um regime teocrático totalitário que substituiu os Estados Unidos. A história é contada por June, que perde a sua identidade, e passa a se chamar de Offred (De Fred, ou seja, do Comandante Fred), tornando-se uma "aia", uma casta de mulheres férteis cuja única função é procriar para a classe dos Comandantes, os líderes do novo governo, devido a uma crise de fertilidade que atingiu a sociedade global.
Tanto a obra literária como a televisiva abordam temas como opressão, controle totalitário, misoginia e religião. As mulheres em Gilead têm seus direitos completamente restringidos, e são submetidas a sistema de castas baseado em funções reprodutivas (as aias, que podem gerar bebês) e as domésticas (martas). A comunidade LGBTQIA é perseguida pelo crime "traição de gênero" e condenada à pena de morte.Atwood criou uma visão de um possível futuro distópico. Essa palavra, de origem grega, se refere a um lugar imaginário onde se vive de maneira precária, sofrida, sob um regime autoritário. Apesar de ser uma obra de ficção, o texto apresenta muita relação com a realidade.
MULHERES SEGREGADAS
A imaginária Gilead de Atwood é um regime cristão, mas, na Faixa de Gaza, governada pelo Hamas, se assemelha a uma "Gilead Islâmica". O grupo terrorista que controla o território palestino governa de acordo com a lei islâmica (sharia). A forma como as mulheres se vestem é monitorada, impondo, inclusive, uma segregação de gênero quando o grupo chegou ao poder. De acordo com a ONG Freedom House, o Hamas não tem transparência na administração da região nem do seu financiamento. Existe repressão à mídia, ao ativismo social, à oposição política e às organizações não-governamentais. Um estudo da Human Rights Watch, de 2018, mostrou que o Hamas promoveu prisões indiscriminadas, interrogatórios e até espancamentos e torturas a jornalistas em Gaza para que eles não divulgassem informações do grupo, como foguetes que falham no lançamento, resultando na morte de civis.
Os direitos políticos da comunidade LGBTQIA são duramente reprimidos. Na prática, o grupo transformou a Faixa de Gaza em uma Gilead Islâmica: o que vemos na série de televisão ou lemos nos livros, se materializa na realidade. As manifestações em diversos países contra Israel, em legítimo apoio ao povo palestino, mas não condena o Hamas pelos seus atos, é uma evidência que os israelenses já estão derrotados politicamente. Esses mesmos grupos que protestam na Europa, seriam duramente reprimidos caso se voltassem contra os seus líderes, como Ismail Haniyeh, que, de seu luxuoso apartamento no Catar, dá ordens bem longe do conflito.
NUMA ENCRUZILHADA
Como tratamos acima, o Hamas conseguiu uma vitória política sobre Israel ao colocar parte da opinião pública global contra o país com a disseminação de imagens de pessoas feridas em bombardeios. O caso do Hospital Batista Al-Ahli, ocorrido no dia 17 de outubro, em que vários veículos de mídia se apressaram em imputar responsabilidade israelense à explosão que aconteceu no estacionamento, mostra como o Estado de Israel já perdeu a guerra de narrativas. Novas análises visuais, feitas por Chad Oland, da Rand Corporation, mostraram que a explosão, som e a cratera feita no impacto evidenciam que o estacionamento do hospital foi atingido por um foguete lançado pela Jihad Islâmica, cujo motor de combustível sólido estava defeituoso.
Israel está em uma encruzilhada do ponto de vista militar. Muitas vozes influentes dentro do país desejam uma invasão à Faixa de Gaza que acabe com o Hamas. No entanto, as Forças de Defesa precisam planejar cuidadosamente a resposta aos atentados de 7 de outubro. Se a ofensiva for muito frágil, pode deixar uma grande parte dos soldados do Hamas ainda operativos. Caso seja muito dura, pode aniquilar o grupo, mas com o efeito de causar muitas baixas civis. Ainda há uma grande quantidade de reféns nas mãos dos terroristas.
A pós-ocupação de Gaza ainda deixa muitos questionamentos: quanto tempo durará? Sendo breve, não resolve o problema do gerenciamento da localidade. Caso se torne longa, pode arrastar Israel para a mesma situação que os Estados Unidos vivenciaram no Afeganistão e Iraque, em menor proporção. A repressão dentro dos territórios palestinos poderá fomentar um aumento de militantes. O próprio Hamas é um entrave para a solução de dois estados, gera caos e o medo, desestabiliza a região do Oriente Médio, minando a paz. Equacionar a reação ao maior número de judeus mortos em um dia desde o Holocausto, com as operações militares em Gaza, é um desafio para as forças de defesa israelenses. Politicamente, Israel já perdeu essa guerra. A vitória militar, e como ela será atingida, é uma incógnita que precisará ser desvendada na atual encruzilhada que o país está.
Antonio Henrique Lucena Silva, doutor em Ciência Política pela UFF e professor da UNICAP