A mera existência é tão melhor que o nada que preferimos existir mesmo na dor. A frase é do filósofo setecentista Samuel Johnson, que fui colher novamente em Coetzee (kut-sê), em cujas páginas continuo me abeberando, com deleite, nestes dias tão solitários de pandemia. A oração contém pensamento moral de exaltação à vida, e encerra o desafio de saber viver diante da perspectiva do nada. O que nos leva à introspecção: existir não é palavra de sentido vazio, o homem define a própria existência pela razão, ao lado das percepções e do convívio social.
A tríplice perspectiva do ser humano (percepção - razão - convívio social) exige autoconhecimento e autoimposição de regras morais, além da consciência dos limites da liberdade individual decorrentes do convívio social. A autoimposição de regras morais não depende de fatores externos, de doutrinação religiosa, por exemplo, mas de um pensamento natural relativo ao que se pretende da vida, não o que se pretende fazer, como escolher uma carreira ou se casar aos 30 anos, mas em termos de princípios. Em cenário idealizado, mas não utópico, o homem deve mirar honestidade, amor ao próximo, liberdade, e diversas regras fundamentais e princípios advindos de um julgamento individual que, na visão kantiana, é o caráter distintivo daquilo que se denomina bom senso.
No âmbito do convívio social, o cenário seria mais complexo, porque um dos princípios fundamentais, a liberdade, se contrapõe à mesma liberdade estabelecida pelo outro como princípio em relação a si mesmo. Não é objetivo desta crônica filosofar, porém. Aliás, adoraria fazê-lo, e limitar minha vida, para lembrar Thoreau, a acomodar a existência à sabedoria, numa vida simples, independente, magnânima e confiante. É que, ao pensar nesses princípios, as brutais realidades do país na pandemia me arrebataram das altitudes do pensamento, e me levaram a questionar por que tantas pessoas de bom nível intelectual do meu círculo de conhecidos não usam máscaras, aglomeram-se em festas e reuniões familiares, rejeitam a vacina, e voluntariamente se dispõem a transmitir o vírus? Para chegar à singela conclusão de que essas pessoas não têm juízo.
Não se trata de cultura ou educação, que desculparia apenas as camadas mais pobres suscetíveis à desinformação maliciosa. Não, é falta de juízo. Foi em uma nota de Kant que encontrei a resposta: a falta de juízo é o que propriamente se denomina estupidez, defeito para o qual não há remédio. Uma cabeça obtusa ou limitada, que só carece de grau conveniente de inteligência e de conceitos próprios, é suscetível de instrução e mesmo de erudição. Mas, como quase sempre nestes casos há falta de juízo, não é raro encontrar homens muito instruídos que deixam frequentemente transparecer essa falta grave em seus trabalhos. Tá explicado!
João Humberto Martorelli, advogado