Desejo o substantivo, aquilo que se revela na essência das coisas e no próprio ato de existir. Mas olho em torno de mim e vejo apenas a essência contaminada e arruinada. Agora já é fácil perceber que a sociedade está grávida de futuro. E todos conhecem o significado da palavra gravidez. Sabem que é possível estar grávido de si mesmo no sentido de «só se ver a si próprio», «só pensar em si próprio», «estar sempre a se olhar no espelho imitando Narciso. É nesse instante que se produz a colisão entre duas personagens: o homem narcísico (eu) e o homem numa estatura coletiva (nós).
Em 1914 Freud publicou uma obra sobre o narcisismo. Em 1923 foi a vez de Martin Buber no ensaio " Eu e tu" (Ich und Du) modalidade de fantasia do real onde o autor revela que nosso narcisismo tem a capacidade de impor um tipo de relação que converte o outro em objeto ou coisa em vez de igual para igual.
Símbolo máximo da vaidade e ostentação na mitologia grega, Narciso se amava tanto que inspirou o nome da patologia "narcisismo", estudada na psicanálise, psicologia, filosofia, literatura, arte, sociologia, pedagogia, política.... O traço maior do narcisista é a necessidade de espectadores. E tudo pode suceder numa motosseata, no palco, na televisão, numa rede social.
O narcisista está sempre em postura de alerta para não deixar que o outro colonize o seu ambiente de poder. Por isso tudo fará para transformar alguém numa figura reles, indigna, odienta, torpe, infame.... Mesmo que para isso use artimanhas, ciladas ou blefe.
Narcisistas, em geral, pretendem ocupar o topo da cadeia de liderança. São figuras eleitas por um povo equivocado ou ludibriado. Revelam alguns traços conhecidos: confundem autoritarismo com liderança; são despojados de altruísmo; carregam consigo a desumanidade, mesmo com os mortos; são negacionistas por natureza; gostam de exterminar os adversários por meios sórdidos; pervertem as instituições; consideram-se manipulam a verdade. Por força do autoritarismo, o narcisista é capaz de dilacerar a Constituição como se fosse um caderno bolorento de caligrafia. Um exemplo? O armamento da população num país em que mais se mata e mais se morre por armas de fogo. Mas, como diria o Papa Francisco, "quem usa os outros, mais cedo ou mais tarde acaba por ser usado, manipulado e abandonado com a mesma lógica".
Dayse de Vasconcelos Mayer, advogada e escritora
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