pobreza menstrual

E se Bolsonaro menstruasse?

"A distribuição de absorventes às mulheres carentes não é caridade, é obrigação do Estado. É questão de saúde pública e mais do que urgente—e ainda não tê-la a nível nacional demonstra o total desinteresse de um país com o bem-estar delas". Leia a opinião da jornalista Katarina Moraes

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Katarina Moraes

Publicado em 08/10/2021 às 19:52 | Atualizado em 06/02/2022 às 19:57
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Lembro da primeira vez que meu absorvente vazou na escola — um drama de toda adolescente. Uma colega me avisou que a cadeira ficou melada, e eu entrei em desespero. Esperei todos os alunos saírem para o recreio para me levantar. Amarrei o casaco na cintura e fui até o banheiro jurando que ninguém tinha visto. Meses depois, numa brincadeira de “inimigo secreto”, em que se presenteia uns aos outros com pegadinhas, recebi uma caixa com um absorvente cheio de sangue falso, e descobri que as pessoas tinham sim visto tudo acontecer. Comecei a tremer. Enquanto todos perguntavam o que eu tinha ganhado, menti, fechei a caixa e joguei no lixo.

O meu “white girl problem” foi resolvido num instante, já que eu — de classe média — tinha mais protetores na bolsa. Joguei fora o que estava cheio, troquei por outro e escondi a parte suja de sangue da calça até o momento de ir para casa. Mas o nível de constrangimento que aquilo me causou foi surreal. Parecia que eu tinha cometido um crime — e isso é mais do que entendível, já que somos ensinadas desde cedo que aquilo que nosso corpo expele todos os meses como um sinal de que nossa saúde está na mais perfeita ordem é sujo e nojento. Queria dizer que imagino, mas na verdade não consigo imaginar, então, o que sentem as meninas que nem direito a menstruar dignamente têm.

Ontem, um dos assuntos mais comentados do dia foi o veto do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) a parte do projeto de lei da deputada federal Marília Arraes (PT) que garantiria a distribuição gratuita de absorventes higiênicos femininos a estudantes de baixa renda e pessoas em situação de rua. Como justificativa, disse que a “oferta gratuita de absorventes higiênicos femininos não se compatibiliza com a autonomia das redes e estabelecimentos de ensino, além de não indicar a fonte de custeio ou medida compensatória”. Mas quanto vale garantir as necessidades básicas das mulheres?

Horas após a divulgação do veto, uma amiga me contou que saía de um restaurante à noite em Minas Gerais quando foi abordada por uma mulher em situação de rua pedindo pelo item. Uma colega tinha um absorvente na bolsa, e entregou à moça, que agradeceu e saiu. Em pesquisa rápida pela internet, vê-se que um pacote com 32 unidades custa, em média, R$ 22. No país em que um quarto da população sofre com insegurança alimentar, segundo Organização da ONU para Agricultura e Alimentação, quem em vulnerabilidade social terá condições de adquirir o item?

Para isso, elas recorrem aos mais absurdos improvisos: colocam na calcinha pão francês, jornal, tecidos… o que tiver disponível para absorver o sangue, expondo suas vulvas a materiais sujos e que podem trazer uma série de doenças que terão que ser custeadas posteriormente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), trazendo os gastos que o presidente tentou eliminar com a assinatura. A distribuição de absorventes às mulheres carentes não é caridade, é obrigação do Estado. É questão de saúde pública e mais do que urgente — e ainda não tê-la a nível nacional demonstra o total desinteresse de um país com o bem-estar delas. Se o presidente menstruasse, saberia disso.

 

Katarina Moraes é jornalista

 

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

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