"O nível do mar subiu e o navio subiu junto. De vez em quando, o governo pensa que foi ele quem elevou o nível do mar..." (Delfim Netto, durante cerimônia de Defesa do Doutorado, por Aloizio Mercadante, em dezembro/2010, véspera de este assumir o Ministério da Ciência e Tecnologia). Tomo esta máxima como epígrafe do Artigo 01/2023, ano que todos queremos seja não só redentor, reparador. Que seja, sobretudo, prenúncio de mudanças - que venham a ser propostas por uma Nação imersa em amplo pacto político e social.
Pois é, estamos no quarto ano desde que neste espaço (17/09/2019) falei da saga brasileira de avanço institucional, depois de quatro décadas de crescimento claudicante, desigualdade social gritante e escandaloso nível de exclusão social. Esta última inclui a desigualdade educacional e o não provimento de justiça cidadã para os desvalidos, este um primo do 'sabe com quem está falando?', que reserva aos privilegiados o longo corredor da procrastinação até "o transitado em julgado". Antes disso, chega-se à ante-sala da impunidade. Não se trata apenas de novas instituições econômicas, portanto.
As reformas devem ser pensadas a partir do conteúdo (resultado, substância) que se espera seja alcançado.
Assumidas algumas hipóteses e marcado o alcance pretendido, avalia-se o que pode ser alcançado no curto, no médio e no longo prazo. O leque é amplo, a ordem de prioridade de formulação e promulgação a ser definida no processo: reforma política, tributos, reforma administrativa (ampla, não só do Executivo), reforma-ajustes da Previdência Social, atualização da reforma trabalhista, reforma do Judiciário, nova configuração do STF, reforma civilizatória do sistema penal, dos tribunais de primeira instância... Aparentemente, não se tem consciência da real dimensão do que significa reformar o Brasil. A super-urgência da miséria e da fome - que tanto serve a objetivos eleitoreiros de governos populistas - consome muita energia e naturalmente ocupa grande espaço. Completam-se 20 anos do Programa Bolsa Família, que permanece grande. E até hoje não se tem conta de quem e quantos cidadãos lograram sair da dependência de auxílios, via colocação no mercado de trabalho. Claro, o medíocre padrão de crescimento responde por boa parte do problema. Todavia, o PBF ser ainda tão expressivo e a pobreza voltar a ser inaceitável (mesmo antes da pandemia) são flagrantes do fracasso.
A propósito, em que avançamos desde o incidental marco de 17/09/2019? Tivemos, em 25/02/2021, a autonomia do Banco Central, de iniciativa do Senado (projeto de um senador do PSDB). Os diretores passam a ter mandato não coincidente com o mandato do Presidente da República, o que aproxima o Brasil de outros países, como os EUA e o Reino Unido. Antes, em dezembro 2016, a promulgação do Teto de Gastos, peça incompreendida, vilipendiada e que se espera venha a ter outro pilar fiscal equivalente. Depois, a Lei Trabalhista, que precisa ser melhorada e atualizada, atentando-se para impactos do padrão da microeletrônica no mercado de trabalho, o que - em termos de danos - gera um amálgama de ocupações precárias, a exemplo de serviços de transporte (Uber é parâmetro), entrega de alimentos e grandes armazéns acoplados ao e-commerce. O governo 2019-2022 ensaiou fazer algumas reformas, mas só conseguiu mais um arremedo da Reforma da Previdência.
Outras tentativas, como Pacto Federativo e Fundos Públicos, não sobreviveram ao desgoverno e à toada única do que estava para ser um frustrado projeto de reeleição. Já a privatização da Eletrobrás - mais iniciativa parlamentar que governamental - virou um pesado jabuti, e foi fortemente criticada pela insuspeita economista Elena Landau. Ademais, o Novo Marco Legal do Saneamento Básico (2020), também algo que resultou de iniciativa e esforços do Parlamento.
Acrescento que julgo pobre o modo de pensar fundado no uso do desgoverno 2019-2022 como parâmetro-álibi para avaliar eventuais mudanças daqui por diante. Devemos ser mais exigentes. Sobretudo no que respeita a reconhecimento de competências, compromisso republicano na governança, resultados alcançados, e cuidado com a modernização institucional do país.
Por fim, retomo a chave de abertura: cuidemos de não pensar que é o governo quem eleva o nível do mar. E - recorrendo a Hélio Schwartsman (FSP, 31/12/2022) - emendo que isso vale, em especial, para quem está "patologicamente animado com o fim do governo Bolsonaro" e com a chegada de uma "nova era".
Tarcisio Patricio, doutor em Economia, professor aposentado da UFPE.