Reconstrução nacional e revogaço?

Sobre o Marco Legal do Saneamento e o Novo Ensino Médio, pretendendo revogar o passado imediato, Lula se deixa guiar por um passado longínquo que leva a modelos anacrônicos e inadequados para o mundo moderno
Sérgio Buarque
Publicado em 12/04/2023 às 0:00
Lula pretende revogar a Lei das Estatais que define critérios rigorosos de qualificação e despolitização para a nomeação de cargos comissionados Foto: LULA MARQUES/AGÊNCIA BRASIL


O governo de Luís Inácio Lula da Silva salvou o povo Yanomami da extinção a que estava condenado pela invasão de garimpeiros estimulada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. A Polícia Federal acaba de descobrir uma pequena cidade de garimpeiros, com aeródromo e vários aviões, no meio da reserva Yanomami. Por esta ação de recuperação e proteção dos Yanomamis, o governo Lula merece os aplausos dos brasileiros e o reconhecimento da comunidade internacional (o Brasil saiu da lista de párias internacionais). Apesar das trapalhadas do próprio presidente Lula quando trata da invasão da Ucrânia pelas tropas russas (a fala tendenciosa, "quando um não quer, dois não brigam") o governo está levando o Brasil de volta ao cenário internacional e recuperando a imagem da diplomacia brasileira. Além dessas duas iniciativas louváveis, o governo também apresentou os fundamentos da proposta do novo arcabouço fiscal que deve substituir o Teto de Gastos que, por diversas razões, simplesmente implodiu. Embora a proposta ainda não tenha sido detalhada, o que foi anunciado da nova regra fiscal sinaliza positivamente para uma trajetória futura de equilíbrio das finanças públicas.

Afora isso e as iniciativas na área ambiental, ainda sem resultados, o governo Lula não avançou quase nada na promessa de reconstrução nacional e dedicou grande parte das suas energias na revogação de leis e decretos aprovadas nos governos anteriores, e não apenas da passagem desastrosa de Bolsonaro. Na sua postura de negar tudo que não foi feito pelos governos do PT, o presidente Lula está misturando o que tem de mais nefasto e reacionário no bolsonarismo, como a liberalização da posse e porte de armas, com leis que renovaram e melhoraram as instituições, como o Marco Legal do Saneamento e o Novo Ensino Médio. Nesses dois casos, pretendendo revogar o passado imediato, Lula se deixa guiar por um passado longínquo que leva a modelos anacrônicos e inadequados para o mundo moderno.

A reforma do Ensino Médio (aprovada pelo Congresso ainda no governo Michel Temer) procurou reverter a lamentável situação do ensino médio brasileiro, apostando na redução do abandono e da evasão escolar e na melhora a qualidade, de modo a elevar o aprendizado. Os indicadores mostram a desastrosa realidade do ensino médio brasileiro. Apenas 5% dos concluintes nas escolas públicas do Ensino Médio alcançaram aprendizado adequado em matemática, e somente, 31% tiveram resultados satisfatórios em português (QEdu), evidenciando um completo despreparo dos jovens para a continuidade dos estudos, entrada na universidade, ou para acesso ao mercado de trabalho. O desempenho nas escolas particulares é muito melhor (embora ainda baixo) - 34% dos concluintes tem aprendizado adequado em matemática e 70% em português - levando à reprodução e ampliação das desigualdades sociais no Brasil.

Para enfrentar esta situação, o novo modelo introduziu um sistema de ensino mais flexível e diversificado, elevando a carga horária, tornando o aprendizado mais atraente para os jovens, e associado à formação técnica, que prepara os jovens para o mercado de trabalho. As corporações e os movimentos sociais pressionam o governo para a revogação da lei do novo ensino médio que, diga-se de passagem, já está em implantação em vários Estados. O principal argumento das corporações contra o novo modelo é o despreparo do sistema público de educação para a incorporação das mudanças, com aumento da carga horária, introdução de formação técnica e flexibilização do curriculum. Estranho argumento. Em vez de defender que os governos intensifiquem a implementação do novo modelo nas escolas públicas, os sindicatos de professores e a UNE pretendem manter o sistema anacrônico e comprovadamente desastroso do passado.

Além da discutível e apressada retirada de várias empresas do programa de desestatização (algumas das quais poderiam ser assumidas pelo setor privado com maior eficiência e qualidade), o governo está promovendo uma alteração no Marco Legal do Saneamento com o objetivo de proteger da concorrência as empresas de saneamento dos governos estaduais, permitindo que assumam contratos sem passar por licitação pública, o que pode afastar o investimento privado. Os indicadores mostram a incapacidade histórica dessas empresas estatais de saneamento a promover o acesso universal à água e, principalmente, ao esgotamento sanitário. Metade dos domicílios brasileiros não estão ligados à rede de coleta de esgoto e cerca de 30% não têm acesso à rede de distribuição de água, precariedade com consequências negativas na saúde, no desempenho escolar e na produtividade do trabalho.

A resistência dos governos do PT à privatização carrega uma mistura de uma arcaica ideologia estatista com a intenção clara de distribuição de cargos públicos com militantes e aliados, nem sempre qualificados para a gestão corporativa. Exatamente por isso, Lula pretende revogar a Lei das Estatais que define critérios rigorosos de qualificação e despolitização para a nomeação de cargos comissionados das corporações estatais (já consegui reduzir, drasticamente, os prazos de quarentena dos políticos na ocupação de cargos). Nada que ajude na reconstrução nacional.

Sérgio Buarque. economista

 

TAGS
Marco Legal do Saneamento Ensino Médio
Veja também
últimas
Mais Lidas
Webstory