Há uma nova expressão no front do debate público: arcabouço fiscal. O assunto é tão relevante para o futuro do país, que ocupa, justamente, todas as discussões adultas, em todos os lugares, ao mesmo tempo.
Apesar da aridez do tema, trata-se de uma proposta que o Presidente da República, em cumprimento à Emenda Constitucional 126/2022, deverá encaminhar ao Congresso até 31 de agosto de 2023, por meio de um projeto de lei complementar. O objetivo é instituir um novo regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do país e criar condições adequadas ao crescimento socioeconômico. Esse novo regramento substituirá o “Teto de Gastos” (EC 95/2016), que, em essência, limitava o crescimento da despesa pública anual à inflação.
O Governo ainda não enviou o projeto ao Congresso, mas já anunciou suas diretrizes. Buscando corrigir distorções da inflexível política fiscal atual, o novo arcabouço elimina a âncora de gastos vinculada à inflação e condiciona o aumento das despesas ao crescimento das receitas. Há também uma outra contenção para as despesas: elas não podem crescer além de 70% do aumento das receitas.
Se no advento da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), um dos mantras era o de que “não se poderia gastar mais do que se arrecadava”, o novo regime fiscal propõe, em certa medida, uma restrição ainda mais forte: “é preciso gastar menos do que se arrecada”. A velocidade do aumento do gasto deve ser menor do que o da arrecadação, sinalizando, no médio e longo prazos, um cenário de sustentabilidade para a dívida pública. Em reforço a esse almejado cenário de equilíbrio, a proposta inclui metas de resultados primários (receitas menos despesas, excluídos os juros) já a partir de 2024 (déficit zero), culminando com um superávit primário da ordem de 1% do PIB em 2026.
Outro aspecto de suma relevância. Haverá um limite máximo e mínimo para o aumento dos gastos anuais – entre 0,6% e 2,5% – com o propósito de evitar excessos e criar uma espécie de “reserva de segurança” em momentos de crescimento econômico e, por outro lado, possibilitar que o governo continue investindo, mesmo em um eventual contexto de crise. É o componente anticíclico do novo arranjo, inexistente no antigo Teto.
Impossível, desde já, prenunciar o êxito da proposta. Pode-se dizer, contudo, que ela busca conciliar as responsabilidades fiscal e social, repactuando o papel do Estado como indutor de um desenvolvimento econômico sustentável. Nem tanto à ortodoxia fiscal, que costuma esquecer a realidade de desigualdades históricas do país, nem tampouco à alquimia fiscal, pautada por retóricas e voluntarismos (virtus in medium est).
De todo o modo, entre apoiadores e críticos, há um consenso: o aumento da arrecadação passa a ser um fator fundamental para o sucesso do novo estatuto fiscal. Assim, cresce a importância de uma reforma que racionalize o sistema tributário nacional e institua maior justiça fiscal. Há ainda outra variável a ser enfrentada no campo das receitas: as renúncias fiscais, a exemplo das desonerações e dos incentivos, que, hoje, somam mais de R$ 400 bilhões por ano, recursos que só o Governo Federal deixa de arrecadar com o objetivo de alavancar setores da economia considerados estratégicos.
É aqui que vislumbramos um novo desafio histórico para os Tribunais de Contas. Certamente, essas instituições serão essenciais para o êxito do novo modelo, em virtude de sua capacidade de atuar no controle da execução das despesas públicas. Mas há um olhar do controle externo que ainda precisa ganhar a devida dimensão: trata-se do controle das renúncias de receitas, que, na doutrina fiscal, são chamadas de “gastos tributários”. É a própria Constituição da República que confere essa competência aos Tribunais de Contas. Não foi por outra razão que a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas (Atricon), tanto por meio de Resolução de 2016, como a partir de recente Nota Recomendatória (01/2023), orientou a todos os Tribunais de Contas do país que priorizem a fiscalização dessas renúncias.
A transparência e a comprovação do interesse coletivo e dos resultados alcançados pelas políticas públicas, formuladas a partir de renúncias fiscais, precisam ser demonstradas pela Administração e apreciadas pelos Tribunais de Contas. As renúncias que não se revelarem eficientes devem ser estancadas, da mesma forma que as despesas, naquilo que a boa técnica denomina spending reviews (revisão de gastos). Atuando do lado das despesas, a partir das lições extraídas no controle da LRF e do próprio Teto de Gastos, mas também na vertente das receitas e de suas renúncias, os Tribunais de Contas estarão fazendo a sua parte neste novo e desafiador cenário fiscal.
Como se vê, o arcabouço fiscal transcende o conceito de limites e regras para controle das despesas. É algo mais amplo e estrutural. Engloba as normas atinentes a receitas, despesas, dívidas, orçamento e controles. E vai mais além. Há duas âncoras sem as quais quase nada será possível no campo fiscal: a democrática e de suas instituições e a ambiental (temas para outras reflexões). Neste novo momento-desafio que nos é colocado, sigamos comprometidos com a concretização do princípio republicano, onde a busca do bem de todos deve balizar agentes públicos e sociedade.
Valdecir Pascoal, ex-Presidente da Atricon e Conselheiro do TCE-PE
Cezar Miola, presidente da Atricon e Conselheiro do TCE-RS