Mulheres filósofas

Ainda não superamos o preconceito e, mais profundamente, a misoginia. Permanecem sutilmente. Os quatro exemplos demonstram que o mundo seria mais humano se houvesse harmonia social entre os Gêneros
GUSTAVO KRAUSE
Publicado em 14/05/2023 às 0:00
Hannah Arendt, uma das maiores filósofas e pensadoras do século XX Foto: REPRODUÇÃO DE VÍDEO/ZDF


Os antigos vazios urbanos do Recife eram os campos da molecada: espaço de lutas renhidas entre os times de ruas e bairros. Prevaleciam as regras do "bocão", mas respeitavam a bandeira branca.

Uma entrada mais violenta tinha como sentença: "Futebol é jogo pra homem". Grave engano. Não passava, de fato, pela minha cabeça que os mais simples fundamentos do futebol (matar a bola no peito, driblar, a caneta, ou seja, passar a bola entre as pernas dos adversários, o voleio, a bicicleta e por aí vai) fossem assimilados e executados com perfeição.

Marta, a franzina alagoana, fez tudo e bem-feito. Ícone do futebol feminino foi eleita por, seis vezes, a melhor jogadora do mundo. Tudo sem o menor apoio dos machos alfas da CBF. Dentro e fora do campo, lutaram no Brasil, no mundo e, hoje, são protagonistas respeitáveis e valiosas no mercado da bola.

Esta lembrança me veio à cabeça ao escutar uma aula sobre Hannah Arendt em que a professora destacou a tímida presença da mulher na longa da história da Filosofia, situação que permanece até os nossos dias.

Não é de estranhar: o berço da Filosofia, a Grécia, excluiu e amordaçou a mulher no mais essencial exercício do ser: pensar. Restavam a submissão, o espaço doméstico e a servidão sexual.

Silêncio era virtude; pensar, pecado mortal. Começou a ser pago por Hipatia de Alexandria, primeira filósofa (lógica e matemática), assassinada, em 415 por uma horda de cristãos.

Pensar diferente das ideias dominantes era fatal. Galileu abjurou o heliocentrismo. Escapou das fogueiras que era o destino implacável das "heresias" femininas.

Corajosamente, as mulheres não se intimidaram, lutaram e, hoje, ocupam, com destaque, carreiras profissionais, inimagináveis para a aversão misógina.

Recentemente, o livro de Wolfram Eilenberg (Todavia, 2022), "As Visionárias", aborda a vida de quatro grandes mulheres, de modo leve e fluente, que, no conjunto, sintetiza a capacidade de transformar o cativeiro feminino e revelar o destemor pessoal e intelectual de romper as mais espessas barreiras da libertação.

Em comum, carregavam "graves" pecados: eram mulheres, judias (á exceção de Simone de Beauvoir), intelectuais, contemporâneas ou vítimas, dos tempos sombrios das guerras mundiais, com o foco na década 1933-1943.

De Beauvoir (1908-1986), autora de "O Segundo Sexo", abriu as comportas do pensamento sobre o ego feminino e sua construção social. A partir dela, o tema da sexualidade segue crescentemente desafiador. Estabeleceu com o existencialista, Sartre, uma relação aberta e liberta: o amor necessário era o que os ligavava; o amor contingente era o laço das relações circunstanciais e fugazes.

Simone Weil (1909-1943), um espírito fraterno no frágil e debilidado corpo enfermiço: intelectualmente precoce; fervorosa defensora da utopia comunista, abominou os crimes stalinistas e aproximou-se de Trotsky; tentou convencer, sem sucesso, o comando francês para atuar no front da guerra como enfermeira ou paraquedista. Sob inspiração de profundas convicções religiosas e enorme produtividade intelectual, escreveu o memorável ensaio sobre a existência humana "O enraizamento" e a destruição da guerra sobre indivíduos e nações. Subnutrida, faleceu, tuberculosa, aos 34 anos.

Ayn Rand, judia-russa (1905-1982), deixou seu país de origem, sempre fugindo do que considerava uma tragédia: a submissão do indivíduo ao coletivo estatal e "ideal". Em 1926, chega em Chicago. O seu pensamento se estrutura sobre a razão e os fatos. Polêmica, argumentava em favor do egoísmo ético e rejeitava firmemente o altruísmo como enobrecimento do autosacrifício, em favor de um coletivo sagrado pela propaganda e a minoria, um lixo. Construiu um sistema filosófico, chamado "Objetivismo". E uma densa obra, "A Revolta de Atlas". E "A Nascente", virou filme.

Hannah Arendt (1916-1975) é uma das maiores filósofas e pensadoras do século XX. Mulher admirável. É dela a expressão "Banalidade do Mal" ao fazer a notável cobertura jornalística e reflexão filosófica sobre o julgamento de Adolf Eichmann, o monstro de Nuremberg. Mal compreendida, despertou a ira de parte da comunidade judaica e dos sionistas. Arendt, além do conjunto da obra, jamais foi superada na dimensão e compreensão das "Origens do Totalitarismo", título do livro, esgotado em 2017, dado ao aumento de interesse no assunto quando Trump assumia a presidência dos EUA. Sob a desumanidade das guerras, Hannah sentiu na própria pele os efeitos do que significa a agonia de respirar em meio às referências destruídas.

Ainda não superamos o preconceito e, mais profundamente, a misoginia. Permanecem sutilmente. Os quatro exemplos demonstram que o mundo seria mais humano se houvesse harmonia social entre os Gêneros.

Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco

 

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